quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Antigono - texto de Massimo Mazzeo




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Massimo Mazzeo ANTIGONO (1755) – ANTONIO MAZZONI

A Casa da Ópera do Paço da Ribeira em Lisboa foi inaugurado em Março de 1755. O seu arquitecto, Carlo Sicino Galli-Bibiena, foi membro duma família ligada à construção de muitos dos mais famosos teatros de Europa (o único edifício desenhado por ele e ainda existente em Portugal é a Igreja da Memória em Belém).

O Director Musical do teatro era David Perez, que fez uma revisão da sua ópera Alessandro nell’ Indie (com libretto de Metastasio) para a inauguração. Nos escassos seis meses da sua existência (foi destruido pelo terramoto no dia 1 de Novembro), foram ao palco do teatro só mais duas óperas, ambos novas e da autoria do compositor Antonio Mazzoni (a convite do David Perez) – La Clemenza di Tito em Junho, e Antigono no outono, ambos também com libretto em 3 actos do Metastasio, e que aparentemente nunca mais voltaram a ser ouvidas.

Os libretti de Metastasio eram os mais usados internacionalmente, nessa altura. O próprio Metastasio, italiano mas residente em Viena, controlava cuidadosamente os movimentos dos libretistas (seus protegés) entre as várias cortes de Europa, com ajuda, no caso da península ibérica, do seu amigo o ex-cantor (castrato) Farinelli, que detinha uma influência muito grande sobre a corte espanhol. O libretto do Antigono, baseado numa figura histórica (Antigono Gonata, rei de Macedónia), era um dos mais preferidos pelos compositores da epóca, devido à sua riqueza emocional, sendo usado por compositores como Gluck, Hasse, Jommelli, Paisiello, Piccinni e Traetta, entre outros.

Antonio Mazzoni (1717-1785) era maestro di capella em Fano e Bologna, onde, a seguir aos anos em Lisboa (1753-55), chegou a ser o “Primo maestro al cembalo” do novo Teatro Comunale na altura da sua inauguração em 1763. Tendo liderado a Accademia Filarmonica de Bologna em vários anos, foi um dos examinadores do Mozart na ocasião da sua admissão a essa instituição em 1770. Embora desconhecidas hoje em dia, as suas obras, principalmente as óperas, ganharam muito prestígio a nivel internacioanl na altura, pela sua originalidade e elegância.

Antigono, tal como as outras duas óperas levadas à cena na Casa da Ópera, foi escrito para seis solistas masculinas: dois sopranos (castrato) em papeis masculinos, dois sopranos (castrato) em papeis femininos, um castrato alto e um tenor (este último no papel titular). Em cada uma das óperas aparecia pelo menos um castrato de fama internacional – Caffariello (no caso da ópera do Perez), Gizziello (no caso de La Clemenza di Tito), e Gaetano Guadagni. Guadagni tinha sido escolhido por Handel para cantar no Messias entre outras obras, e criou mais tarde o papel de Orfeo na ópera de Gluck, exercendo uma grande influência nas reformas iniciadas por esse compositor, devido aos seus poderes de representação (tinha sido aluno do grande actor David Garrick, em Londres). O tenor nas primeiras duas óperas foi Anton Raaff (mais tarde o primeiro Idomeneo na ópera do Mozart), e no Antigono foi Gregorio Babbi, um dos mais conhecidos da época. Cada solista tem essencialmente uma ária em cada acto, com algumas excepções. De conjuntos existem só um dueto no fim do 2º Acto e um “Coro” dos seis solistas no final do 3º Acto. Há também uma marcha instrumental no 1º acto. A música é surprendentemente bonita, com uma escrita virtuosística para os violinos, e muitas indicações de dínamica, dando-lhe mais o carácter duma ópera pre-clássica (com traços do estilo “Mannheim”, mais propriamente Jommelliano) do que uma ópera barroca.

A instrumentação-base consiste em dois oboés, duas trompas, dois trompetes (não existe parte escrita pelos tímpanos) e cordas. Aparecem também instrumentos- obbligato nas árias – duas flautas de bisel, duas flautas transversais, duas “trombe di caccia” e duas “trombe lunghe”.



-ANTIGONO, Tenore, Michael Spyres
-BERENICE, Soprano, Geraldine Mcgreevy
-DEMETRIO, Soprano, Pamela Lucciarini
-ALESSANDRO, Alto; Martin Oro
-ISMENE, Soprano Ana Quintans
-CLEARCO, Soprano, Maria Hinojosa Montenegro

http://www.pietrometastasio.com/news.htm

http://www.youtube.com/watch?v=pg7hPfjBulc

http://www.youtube.com/watch?v=guGyyiT2zEo&feature=related

http://www.youtube.com/watch?v=XasCqW5CHaI

http://www.crotchet.co.uk/K6172012.html

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Antigono - em Janeiro 2011 no CCB





Antígono é uma das 3 óperas apresentadas durante a curtíssima existência, de apenas 7 meses, da Ópera do Tejo. Alessandro nell’Indie, La Clemenza de Tito e Antígono constituíram todo o repertório desta casa da ópera e o Antígono estava, efectivamente, em cena na altura do terramoto de 1755. Tinha acabado de estrear duas semanas antes desse fatídico dia 1 de Novembro, e a sua carreira estava portanto em curso. A existência de Antígono, como uma das obras interpretadas na Ópera do Tejo, só nos foi revelada há muito pouco tempo pelo musicólogo Manuel Carlos de Brito, que descobre o libreto na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e o faz corresponder a uma partitura existente na Biblioteca do Palácio Nacional da Ajuda. O libreto, que terá sido levado para o Brasil, pela família real, por altura do seu exílio durante as invasões napoleónicas, contém toda a informação sobre os criadores e intérpretes da obra e refere que a sua estreia acontece na Ópera do Tejo, durante o Outono de 1755. A data exacta da sua estreia só é conhecida mais tarde, através de um relato do Núncio Apostólico em Lisboa, que descreve a visita do rei, D. José I, ao teatro, a 7 de Outubro, na altura para assistir a um ensaio de orquestra, e a estreia, no dia 16 do mesmo mês. São, como disse, descobertas relativamente recentes, e é claro Antígono nunca mais foi ouvido, desde a sua época de estreia há 256 anos. O elenco original de criativos e intérpretes é verdadeiramente impressionante: desde logo o grande Metastasio é o autor do libreto, António Mazzoni o da música, Giovanni Gali Bibiena (o arquitecto da própria da Ópera do Tejo) é o autor da cenografia, Petronnio Mazzoni o construtor das famosas máquinas de cena (uma espécie de efeitos especiais do teatro do barroco) e Andrea Alberti assinava as coreografias que preenchiam os intervalos.

Baseado na figura histórica do rei da Macedónia que inspirou muitos outros compositores como Mozart, Piccinni e Gluck, Antígono foi escrito para seis solistas masculinos todos castrati à excepção de um, e entre os quais se encontrava o famoso Caffarelli.

Na sua versão para 2011, o minucioso trabalho de transcrição da partitura está a cargo de Nicholas Mcnair, a encenação a cargo de Carlos Pimenta, a cenografia é de António Jorge Gonçalves, os figurinos de José António Tenente e, da lista de intérpretes, é de destacar a presença de Michael Spyres (Antigono), Sonya Ioncheva (Berenice), Martín Oro (Alessandro) e Ana Quintans (Ismene), só para referir alguns.Estes são os meandros da investigação musicológica que desta vez trouxeram à luz do dia uma obra que promete fazer reviver esse período de ouro da ópera em Portugal.

Luisa Taveira

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Alguém olhará por mim - Frank Mcguinness





Frank McGuinness
Nasceu em 1953 no condado de Donegal, no norte da Irlanda, tal como Brian Friel (o irlandês que mais recorrentemente tem visitado o nosso palco), e é frequentemente considerado como o mais destacado dramaturgo inglês da sua geração. Voz radical, reveladora de uma sensibilidade mais urbana e cosmopolita do que a generalidade dos seus compatriotas dramaturgos das gerações anteriores, Frank MacGuinness sentiu-se interpelado pela história do cativeiro de Brian Keenan (irlandês que durante quatro anos partilhou uma cela do Líbano com um repórter da televisão inglesa e três norte-americanos) e escreveu Alguém Olhará por Mim.

Ficha Técnica
Texto de Frank MCGUINNESS
Encenação Carlos PIMENTA
Tradução Paulo Eduardo CARVALHO
Cenografia João Mendes RIBEIRO
Figurinos Bernardo MONTEIRO
Desenho de luz José Álvaro CORREIA
Música Ricardo PINTO
Assistente de encenação e produção Vânia MENDES
Intérpretes Jorge PINTO, Alberto MAGASSELA, Pedro GALIZA

5 a 7 NOVEMBRO 2010
Sex e Sáb às 21h30 e Dom às 16h
Duração:02h00m
M/12

Alguém olhará por mim - de 5 a 7 de Novembro - Teatro Municipal de Almada





Em Alguém olhará por mim (1992), texto a que a Associação de Críticos de Nova Iorque atribuiu o Prémio de Melhor Peça Estrangeira, um inglês, um irlandês e um norte-americano são feitos reféns e confinados a um cárcere onde antagonismos pessoais reproduzem antagonismos políticos. Aqui, Beirute é também Belfast, e o pano de fundo do conflito do Médio Oriente remete directamente para o coração do conflito na Irlanda do Norte. Depois da viagem nas duas últimas temporadas por clássicos como Tchecov, Ibsen e Molière, o Ensemble regressa – sob direcção de Carlos Pimenta – aos contemporâneos e a Frank McGuinness – poeta e dramaturgo irlandês, nascido em 1953, de que em 2001 apresentou uma desarmante Dama d’água, encenada por Nuno Carinhas.

sábado, 9 de outubro de 2010

Dueto para Um - Texto Programa



Natureza humana

Carlos Pimenta

Poderá Stephanie Abrahams ainda existir na ausência progressiva de um corpo que lhe impede a realização dos actos determinados pela consciência? Numa época – a nossa – em que o luto do corpo se vai fazendo na virtualidade de uma existência a que os avanços tecnológicos e científicos dão uma outra identidade (in)corpórea, para onde relegamos o Humano?

Stephanie procura resgatar-se da impossibilidade física que lhe condiciona o acto e o pensamento. Como a própria afirma, “é impossível mudar esta condição com determinação”. Stepanhie está dependente da inoperacionalidade de um corpo que a projecta na existência – no mundo – lugar do seu refúgio enquanto ser. Confrontada com essa impossibilidade, recusa-se a aceitar uma outra situação e encaminha-se para o acto último que a conduzirá à negação da sua manifestação num mundo que já não lhe surge sequer como propósito da própria vida.

O Homem é um ser no mundo – sozinho não existe – e é pela afirmação da vontade que vai adiando a inevitabilidade da morte. Para Stephanie, é precisamente a sua condição humana que impede, agora, que a sua vontade se afirme.

Nesta luta de milhares de anos para ultrapassar a nossa condição biológica, relembramo-nos constantemente enquanto seres na natureza. Contudo, não o fazemos para dela nos aproximarmos, mas, sim, para contra ela lutarmos. Descartada a ideia de Deus, as conquistas do homem são, tal como diz Feldmann, “o seu propósito e a sua recompensa”.

Stepanhie descobriu o seu propósito na música e na arte. Para ela, o violino não é um modo de vida, é onde vive. Com ele construiu um mundo inteiramente seu. Para alguns isto será fantasia mas, para ela, é esse o mundo real que construiu para se pacificar da “dor e da mágoa e da perda e das terríveis mudanças”.

Para Stephanie a arte é um exercício de legitimação, de sublimação, no qual procura reencontrar-se consigo mesma. Sem esse exercício interrompe-se a sua caminhada no mundo. Sabemos que não nos é possível negar a nossa condição biológica mas, sabemos, também, que a finalidade da existência se cumpre naquilo que é a nossa natureza racional, moral e espiritual.

Sem possibilidade de comunicar com os outros pelo exercício pleno da sua arte, Stephanie considera que a existência não faz sentido: porque é somente na sua possibilidade de expressão que encontra sentido para a vida.

“Senhora Abrahams, sabe qual é o sentido da vida?” – pergunta Feldmann do seu lugar de observador que lhe proporciona objectividade e clarividência. A resposta está no longo discurso em que, ele próprio, se revela enquanto Homem. Mas está, também, nas palavras de António Damásio que Feldmann, certamente, subscreveria:

“O que quer que inventemos, desde as normas da ética e do direito, passando pela música e literatura, até à ciência e tecnologia, é directamente inspirado pelas revelações da existência que a consciência nos oferece. […] O drama da condição humana deriva unicamente da consciência. […] Melhorar o nosso quinhão de existência é precisamente aquilo em que tem consistido a civilização, principal consequência da consciência e, desde há pelo menos três mil anos, com mais ou menos sucesso, melhorar a existência é aquilo que a civilização tem vindo a tentar”.

Em Dueto para Um, Stephanie trava uma dura batalha contra si própria. A seu lado, Feldmann procura ajudá-la com uma “arma” cada vez mais esquecida: saber ouvir.

Outubro de 2010

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

sábado, 2 de outubro de 2010

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Dueto para Um - TECA / Porto - a partir de 8 de Outubro






O autor – o londrino Tom Kempinski (n. 1938) – é praticamente desconhecido entre nós. A peça, contudo, celebrizou o dramaturgo no West End e na Broadway, tendo sido apresentada em 46 países e merecido a atribuição do London Theatre Critics Award. Na companhia de Carlos Pimenta, encenador com quem o Ensemble vem estreitando relações nas últimas temporadas, a dupla fundadora Emília Silvestre/Jorge Pinto interpreta este árduo Dueto para Um, no qual uma violinista famosa, confinada pela esclerose múltipla a uma cadeira de rodas, confronta a sua condição e identidade em sessões de psiquiatria. À semelhança do que aconteceu com a produção anterior da companhia – Alguém Olhará por Mim, de Frank McGuinness, que incidia sobre a experiência do cativeiro de um jornalista irlandês e seus companheiros no Líbano –, também Dueto para Um explora a matéria a que tão desajeitadamente chamamos “vida real". Lidando com material de pendor melodramático, Tom Kempinski não cruza a fronteira de um sentimentalismo condescendente, propondo um braço-de-ferro entre um psiquiatra e uma paciente cujos protestos – mais do que as revelações – nos dão a medida exacta do seu sofrimento.
Texto: TNSJ

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Dueto para Um - Estreia a 8 de Outubro | TECA - Porto









Dueto para Um


Autor: Tom Kempinski


Tradução: Constança Carvalho Homem



Direcção: Carlos Pimenta


Cenografia: João Mendes Ribeiro


Figurinos: Bernardo Monteiro


Desenho de Luz: José Álvaro Correia


Música original: Ricardo Pinto


Vídeo: Alexandre Azinheira


Assistente de Encenação: Vânia Mendes



Com: Emília Silvestre e Jorge Pinto



Uma produção ENSEMBLE – Sociedade de Actores


Estreia a 8 de Outubro no TECA TNSJ - Porto

terça-feira, 10 de agosto de 2010

terça-feira, 6 de julho de 2010

Antígono - em Janeiro de 2011 no CCB






CCB – 21/22 Janeiro 2011 Sexta/Sábado . Grande Auditório 21h
Estreia moderna mundial
Antígono
Ópera em três actos de Antonio Mazzoni com libreto de Pietro Metastasio (1755)

Enrico Onofri direcção musical
Carlos Pimenta direcção cénica
António Jorge Gonçalves desenho digital em tempo real
José António Tenente figurinos
Nuno Meira desenho de luz
Nicholas McNair reconstrução da partitura, edição crítica


Michael Spyres Antigono
Sonya Ioncheva Berenice
Pamela Lucciarini Demetrio
Martín Oro Alessandro
Ana Quintans Ismene
Maria Hinojosa Montenegro Clearco

Orquestra Divino Sospiro

Antígono (1755) de Antonio Mazzoni foi a última ópera estreada em Lisboa antes do terramoto de 1755. A malograda Casa da Ópera do Paço da Ribeira – inaugurada em Março de 1755 e destruída poucos meses depois, com o terramoto de 1 de Novembro – foi provavelmente o único espaço que assistiu à interpretação desta ópera. Terceira e última produção da efémera Ópera do Tejo (como passou a ser conhecida), é igulamente uma das poucas composições sobreviventes de Antonio Mazzoni. O libretto de Antigono, da autoria de Pietro Metastasio, foi um dos preferidos pelos compositores desta época, como Gluck, Hasse ou Piccinni. A partitura de Mazzoni, que regressa agora com o Divino Sospiro, sofreu um trabalho de edição crítica da responsabilidade de Nicholas McNair.



“Se a ideia de imperfeição está associada à etimologia de barroco, dela nos apropriamos para estabelecermos o nosso conceito de esboço para uma obra. Esta partitura e este libreto surgem-nos – mais de 250 anos depois – resgatados do encobrimento que as ruínas do Grande Terramoto pareciam ter determinado. Esta é uma ópera sem memória. Queremos recuperá-la do esquecimento, tentando adivinhar as linhas que davam forma ao espaço físico e sentimental que lhe proporcionou efémero esplendor. Na glória do barroco o tempo transforma-se em eternidade. O hiato temporal a que a natureza condenou Antígono foi imerecido castigo. Não é, contudo, a arqueologia que nos move. No século XXI, o nosso barroco só poderá ser um barroco digital
Carlos Pimenta

InternacionalizArte


Obscena – Revista de artes performativas
#24 – Julho/Agosto 2010
www.revistaobscena.com
www.facebook.com/obscena
Opinião
por Carlos Pimenta

InternacionalizArte
-transacções, exportações e algumas mistificações –

Fotografia
A recente publicação, pelo Observatório das Actividades Culturais, do estudo “Mobilidade Internacional de Artistas e outros Profissionais da Cultura” veio suscitar alguma (pouca!) intervenção pública sobre esta matéria. O estudo destaca a fraca mobilidade internacional dos artistas e agentes culturais e o défice de informação sobre as oportunidades relativas a este aspecto da sua actividade. Tendo sido, entre 2006 e 2009, consultor do Instituto Camões para a área das artes performativas, com funções específicas no domínio do lançamento e execução do Programa de Apoio à Internacionalização, considero pertinente complementar os resultados do estudo com algumas informações e dados decorrentes da experiência proporcionada pelo acompanhamento do Programa. O Programa de Apoios, implantado pela então Presidente Simonettta Luz Afonso, procurava regulamentar e calendarizar a intervenção do Instituto nesta área e, fundamentalmente, dar resposta às iniciativas desenvolvidas pelos artistas e organizações culturais privadas, possibilitando a apresentação internacional da arte e da cultura portuguesa em áreas tão diversificadas como a arquitectura, teatro, dança, cinema, design, projectos transdisciplinares, artes visuais, etc. Procurava-se, também, alterar a imagem da instituição que passou a assumir com clareza o papel determinante da arte e da cultura na promoção e ensino da língua no estrangeiro.
O Programa orientava-se, essencialmente, para o apoio a privados complementando, também, a actividade e iniciativa que o próprio Instituto desenvolvia através da sua rede mundial de Centros Culturais e Leitorados. De realçar, que os financiamentos atribuídos nunca se destinaram à actividade própria do Instituto, embora os projectos e iniciativas decorressem em articulação estreita com os diversos organismos constitutivos da rede internacional de que dispõe.
Ao contrário daquilo que o senso comum considera como dominante na área da internacionalização (uma forte dependência do Estado enquanto promotor das iniciativas) foi surpreendente verificar a capacidade de acção de artistas e organizações no que respeita à implantação dos seus projectos nos diversos contextos internacionais. Assim, ao longo de quatro anos, foram apresentadas ao Programa de Apoios 900 candidaturas, tendo sido apoiadas cerca de 1/3 desse universo global. O maior número de apoios verificou-se nas áreas do teatro, dança, artes visuais, música, cinema e projectos transdisciplinares. Em termos geográficos, Espanha, França, Brasil, EUA, Itália, Reino Unido, Alemanha e Polónia, foram os países que mais projectos viram apoiados no âmbito do Programa (refira-se a este propósito que as entidades estrangeiras que apresentassem iniciativas no contexto da cultura portuguesa também poderiam submeter candidaturas).
Importa destacar o facto do Programa de Apoio à Internacionalização ter sido o único, no contexto das instituições oficiais nacionais, que funcionou ininterruptamente ao longo de quatro anos contribuindo, desta forma, para o estabelecimento de uma efectiva base de confiança entre os artistas e a instituição. Os bons resultados do Programa devem-se, essencialmente, ao facto deste estar desenhado para dar resposta às necessidades dos artistas e suas organizações, respeitando a sua liberdade de escolha e apoiando financeiramente algumas das áreas que as suas contratualizações com as organizações internacionais não cobriam – sobretudo no que dizia respeito a deslocações.
As instituições públicas devem resistir à tentação de querer fazer aquilo que cabe às organizações culturais. Estas, melhor conhecedoras do terreno, são capazes de fazer melhor, com menos desperdício de meios e com mais eficácia. Aos organismos públicos caberá apoiar financeira e institucionalmente as iniciativas resultantes do vigor do meio profissional potenciando, com a abertura de canais oficiais e diplomáticos, o trabalho desenvolvido pelos privados. É certo que muitos organismos oficiais procuram afirmar a sua própria visibilidade através da promoção de iniciativa própria legitimando, desta forma, o reconhecimento público dos contribuintes (e dos eleitores!) quanto á sua acção e quanto à sua própria existência e necessidade. Nada de mais contraproducente para o desenvolvimento artístico. A Administração é meio e não fim. Deverá, pois, e sobretudo, concentrar a sua atenção e esforço na necessária adaptação às novas realidades conjunturais, vencendo alguma inércia e formalismo ainda persistentes, tornando-se mais ágil e optimizando a sua capacidade de leitura das transformações que ocorrem no sector artístico para que possa dar respostas mais eficazes às solicitações de um sistema em mutação constante.

Exportação, difusão, mobilidade

Não é possível encarar a internacionalização da arte e da cultura na mera perspectiva da “exportação” – conceito mais adequado ao contexto mercantilista, no qual a arte e a cultura não encontram uma correspondência plena na generalidade dos pressupostos. Assim, a presença da arte e da cultura portuguesa nos diversos circuitos internacionais de difusão deve ser perspectivada no contexto normal da mobilidade e não, como outrora foi encarado, no da prevalência e dominância cultural que presidiu a alguns colonialismos e instrumentalismos que serviam objectivos meramente geopolíticos. A tendência para a instrumentalização da cultura é bem visível no mais recente filme de João Canijo “Fantasia Lusitana” que, ao contrário daquilo que muitos podem pensar – afirmar-se como um documentário sobre o Portugal dos anos 40 do século passado – constitui-se como um inteligente e subtil retrato vivo de algumas situações que ainda experimentamos no presente.
Nos dias de hoje, as teorias relativas ao chamado “soft power” procuram revivificar o papel da arte e da cultura no âmbito de uma neo-instrumentalização que lhes será prejudicial e à qual os artistas e agentes culturais se devem opor.
As novas gerações de artistas encaram a apresentação dos seus projectos no contexto internacional como algo de absolutamente normal no âmbito da sua actividade – resultado de um cosmopolitismo que até há alguns anos era menos evidente na nossa sociedade. A circulação internacional dos artistas e das suas obras verifica-se, felizmente, independentemente das fronteiras físicas ou ideológicas e a sua limitação é, regra geral, um sinal inequívoco de constrangimentos de natureza política ou cultural que já não aceitamos nas sociedades contemporâneas cada vez mais abertas e universalistas. Contudo, se essa abertura internacional se procura estimular nas áreas comerciais, no que respeita à arte e à cultura ela sempre se verificou. A arte e a cultura são áreas fortemente caracterizadas pela transnacionalidade. Já em 2008 o relatório do ERICarts sobre a mobilidade dos artistas na UE realçava que essa mobilidade “constitui um aspecto que faz parte integrante da actividade profissional normal dos artistas e dos outros profissionais da cultura”.

A cultura como investimento

Poderá perguntar-se: mas, não estando a arte e a cultura excluídas do tecido económico, não deverão estas ser capazes de gerar os recursos suficientes para o seu desenvolvimento? Existiu, durante demasiados anos, na opinião pública, a ideia de que a cultura era um autêntico sorvedouro de dinheiros públicos. Felizmente essa ideia caiu por terra quando, com cada vez mais frequência - porque a “crise” tornou impossível o seu encobrimento - vieram a público notícias de avultadíssimas injecções de capital (do nosso capital!) para salvar alguns sectores da economia que, afinal, em nada estavam a contribuir para o desenvolvimento económico. Se comparadas com as verbas agora atribuídas ao chamado “sector produtivo” e ao sector financeiro, as que têm sido disponibilizadas para o desenvolvimento cultural podem definir-se numa palavra: irrisórias. Contudo, podemos considerar que essas verbas têm sido aproveitadas pelos artistas com grande eficácia. O reconhecimento internacional, ao contrário do que se verifica em muitos outros sectores, está comprovado. Talvez, por isso, nos reste, no meio de tanta desgraça, o prazer da afirmação cultural através da presença da nossa arte e da nossa cultura nos contextos geográficos mais insuspeitos e diversificados. Apesar de tudo, devemos estar conscientes da nossa dimensão enquanto país. O nosso problema é, também, um problema de escala. No que diz respeito à cultura, essa noção de escala tem sido superada e isso acarreta uma maior exigência e uma maior responsabilidade no que respeita à manutenção deste nosso relativo sobredimensionamento face às expectativas exigíveis. No entanto, o desenvolvimento de qualquer política cultural neste sector só poderá ser feito com a conjugação de boas ideias, bons projectos, boas equipas e orçamentos adequados garantindo, obviamente, a sua aplicação sem desperdício e com a máxima eficácia. Quando a ideia de recurso ao mecenato já não vinga como alternativa lançada aos agentes artísticos para mitigar a insuficiente disponibilidade de verbas do OE procura-se, muitas vezes, propalar a auto sustentabilidade da arte e da cultura - como se o recurso à sua “exportação” fosse a panaceia para toda a insuficiência orçamental que o sector tem atravessado (situação, aliás, já reconhecida publicamente pelo actual Primeiro-Ministro).
As dúvidas relativas ao real valor em termos económicos da cultura prendem-se, sobretudo, com a mensuração dos seus ganhos que, não sendo muitas vezes imediatos, são de contabilização mais complexa e, por isso mesmo, negligenciados no ‘deve e haver’ tão característico da nossa – agora – tão imediata necessidade de captação de recursos externos. Descoberto, recentemente, por alguns, o potencial económico da cultura, o primeiro impulso é o da sua rendibilização acelerada. No entanto, uma visão demasiado mercantil deste sector - com características tão específicas – pode contribuir para a sua descaracterização e para a sua transformação em mais uma mercadoria que contribua para o equilíbrio do défice externo: ultimamente temos vivido (continuaremos a viver?) num projecto de sociedade meramente aritmética e não num projecto de sociedade humanista que potencie um desenvolvimento integral. A este respeito, parece-me da maior prudência desmistificar algumas “teorizações” que procuram englobar as artes performativas no conceito genérico de “indústria cultural”. Mais uma vez se procura, com esta falsa possibilidade de pertença, um caminho que passe pela auto-sustentabilidade das mesmas com a agravante, neste caso, de uma completa ignorância do significado do conceito proposto por Adorno e Horkheimer.
Talvez seja oportuno questionar o “encantamento” que nalguns tem provocado a noção de “indústria cultural”. Recordem-se, a este propósito, as palavras de Lipovetsky e Serroy na sua mais recente publicação A cultura-mundo. Resposta a uma sociedade desorientada.
“ a lógica que rege as indústrias culturais é uma lógica de diversificação e de renovação permanentes, uma lógica de novidade e de obsolescência acelerada. Um filme afasta o outro, uma vedeta toma o lugar de outra, um disco substitui o precedente. O temporário é a lei, tanto estética como económica, da cultura de massas, acompanhando estruturalmente o mundo moderno da velocidade e da inovação permanente”
Nada tenho a opor à aposta no desenvolvimento das indústrias culturais importa, contudo, tornar claros os sectores que estas englobam e a especificidade de cada um deles. Caso contrário, estaremos a condenar definitivamente a uma perspectiva de ordem meramente económica áreas determinantes para o desenvolvimento e coesão social como o património, as redes museológicas, o teatro, a dança ou a música ao vivo, e, claro, tudo aquilo a que ainda chamamos arte.

O desinvestimento como cultura

Hoje em dia, o desinvestimento na cultura vai-se justificando com a famigerada crise. Se, por um lado, ela se reflecte nas cativações e no chamado “esforço de equilíbrio orçamental” parece, por outro lado, não existir nos apoios ao sector financeiro que o Estado Português tem disponibilizado. A crise, afinal, é um espelho de dupla face. E, na conjugação das duas, se percebe que o financiamento da actividade cultural não é prioridade.
Embora os diversos ministros da cultura reconheçam (à excepção do anterior) as insuficientes verbas colocadas à disposição dos seus ministérios, é certo que, recordando Manuel Maria Carrilho “a cultura ainda não está no coração da política”. Para superar as dificuldades orçamentais do sector cultural pede-se aos artistas e às organizações e gestores culturais, que sejam inventivos. Para mitigar os erros de gestão no sector bancário, disponibiliza-se capital. Para a generalidade dos políticos os apoios à cultura são da “ordem do discurso” mas os apoios ao sector bancário são da “ordem de pagamento”.


Conclusão

Embora por vezes exista, esporádica e sectorialmente, uma tímida vontade de articulação entre os diversos ministérios responsáveis pela determinação de políticas relativas à internacionalização (Cultura, Negócios Estrangeiros, Economia) não é de esperar, no curto prazo, que essa articulação se efective de uma forma substancial capaz de gerar verdadeiras sinergias que conduzam o sector a um maior desenvolvimento. A inércia funcional que algumas instituições ainda encerram será, sem dúvida, um obstáculo à articulação de projectos conjuntos virados para uma real potenciação das actividades dos diversos agentes culturais. Caberá, talvez, aos artistas e às suas organizações assumir essa liderança reclamando do Estado o cumprimento do seu papel enquanto entidade financiadora. E daqui não virá nenhum mal: é esse um dos papéis do Estado. Nem tão pouco há que interiorizar qualquer complexo de menoridade: basta substituir o estigmatizado “subsídio” por “incentivo” e logo vemos que é essa a prática generalizada em quase todas as áreas da nossa actividade empresarial. A tão propalada importância económica da cultura veio, afinal, justificar que esta seja cada vez mais apoiada. Por isso, há que inverter a ordem do discurso. O sector cultural faz, agora, assumidamente, parte da economia e sendo um dos sectores económicos com maior potencial de crescimento, justifica-se que esse crescimento seja incentivado.

Carlos Pimenta – Encenador e actor – foi consultor do Instituto Camões para a área das artes performativas entre 2006 e 2009.

terça-feira, 22 de junho de 2010




Em 1996, Carlos Pimenta encenou Moderato Cantabile no Teatro Nacional D. Maria II, onde o teatro de Duras vê reafirmado um trabalho de ocultação e de sofrimento, da impossibilidade do dizer.





A pequena história dos amantes sem destino
texto Carlos Pimenta
fotografia Margarida Dias


Um crime passional. Um homem que mata uma mulher. Um bar operário. Outro homem e outra mulher encontram nas palavras com que procuram compreender esse crime, a razão do seu regresso sistemático ao local onde tudo se passou. Estabelecem entre si uma rotina obsessiva na expectativa de um acontecimento que não surge e lhes permita preencher o silêncio que se insinua como desejo no aproximar dos corpos. O que se passará com aquele homem que o impede de dizer? Quem será aquela mulher que se esconde no excesso de palavras? Quem pode nomear o que entre eles se passa? Que futuro lhes é possível naqueles encontros em que o tempo fica à espera que um qualquer destino se revele? Talvez a sua história aconteça somente num ligeiro roçar da pele, nos olhares que trocam e lhes param o pensamento, num beijo que quase se deixa ver como prova da existência dos dois corpos.
No meio de tão pouca coisa há uma patroa que observa, um marido que não vemos, uma criança que aprende a tocar piano e um escândalo que se insinua.
O teatro de Duras vive no silêncio, no não dito. Não é um teatro de acção, de acontecimentos. É um teatro da espera. Tal como afirma o Vice-Cônsul de India Song “É preciso que qualquer coisa aconteça entre nós”.
Na banalidade das pequenas coisas da vida só nos seus extremos se revela o ser: no amor, ou no crime. A escrita de Duras vive na procura desta radicalidade e por ser tão verdadeira lhe chamamos cruel, é, como referiu Ernesto Sampaio, algo que nos “deixa no espírito um surdo rasto de fósforo a arder”.
Quando em 1996 dirigi Moderato Cantabile, procurámos reforçar no espectador a sua condição de voyeur. Entre ele e os actores a barreira invisível de uma montra de café acentuava a distância relativa a uma intimidade à qual não pertencia: o vidro permite ver mas não permite ouvir ou tocar. Lá dentro, os actores viviam as suas histórias. Do lado de fora, o público recebia-as na mediação que o som marcadamente cinematográfico impunha e que transportava o real para um imaginário que o cinema, exemplarmente, torna possível. O espaço onde se desenrolava Moderato Cantabile era claramente um dispositivo: um interface entre materialidade e imaginário que permitia, tal como no processo de descodificação do simbólico da escrita, reorganizar os seus elementos e entregá-los à subjectividade, que é o espaço próprio para o activar das ficções.
Tínhamos assim dois planos: um espaço físico que correspondia ao estabelecimento do lugar do espectador e do lugar do actor, e, um espaço imaginário que correspondia à intersecção dos dois lugares. E era neste espaço que tudo se passava. Equivalia, de certa forma, ao plano individual da leitura. Um narrador em off lembrava-nos, na sua ausência física, as palavras enquanto escrita. O teatro tem por função dar a ver. Em Moderato Cantabile procurámos, sobretudo, ocultar.
A obra de Duras é, também, toda ela, um trabalho de ocultação e de sofrimento, da impossibilidade do dizer: daí o rigor na construção das frases, na economia das palavras. É, uma escrita do interdito, da subversão, das trevas. O que essa escrita revela deve ser lido naquilo que não diz, no grande silêncio que se constitui ele próprio como acontecimento e nos contém no impulso imediato de o querer mostrar. Ao encenador compete organizar o espaço desse silêncio: o espaço da “insinuação do terrível no interior do banal”.
A versão cénica de Moderato Cantabile estreou em 7 de Julho de 1996, na Sala Estúdio do Teatro Nacional de D. Maria II. Em 1995, Marguerite Duras consentiu na realização do espectáculo. Foi a primeira vez que autorizou a adaptação teatral de uma obra sua sem que ela própria a tivesse efectuado. Esta situação, absolutamente excepcional, deveu-se à qualidade da tradução e versão cénica da autoria de Ernesto Sampaio e ao empenho posto por Eduardo Prado Coelho nas muitas conversas que manteve com a autora e com Yann Andrea. Aos dois intelectuais portugueses, entretanto desaparecidos, a minha homenagem.

Moderato Cantabile
Autor: Marguerite Duras; Tradução e versão cénica: Ernesto Sampaio;
Encenação: Carlos Pimenta; Cenário: Nuno Carinhas; Música original:
Rodrigo Leão; Figurinos: Marie Briet; Desenho de som: Paulo Abelho;
Desenho de Luz: Isabel Aboim; Apoio vocal: Luis Madureira; Com: Fernanda
Alves – A Patroa Mónica Calle – Anne Rogério Samora – Chauvin Diogo
Carvalho / Filipe Narciso – A Criança João Reis – Voz Off

Este texto foi publicado na OBSCENA #22.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Morreste-nos






Paulo Eduardo Carvalho era professor do Departamento de Estudos Anglo-Americanos na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e investigador no Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras de Lisboa.

O docente é autor de vários livros, entre os quais uma monografia sobre Ricardo Pais, "Ricardo Pais, Actos e Variedades", editada em 2006 pela Campo das Letras quando o encenador era também director do Teatro Nacional São João, e também “Identidades Reescritas – Figurações da Irlanda no Teatro Português” (Colecção Estudos de Literatura Comparada). Escreveu também "Identidades Reescritas – Figurações da Irlanda no Teatro Português" (Edições Afrontamento, 2009), livro que retoma sua a tese de doutoramento sobre a presença da dramaturgia irlandesa na dinâmica da criação teatral portuguesa dos últimos 50 anos.

Traduziu peças de Harold Pinter, Samuel Beckett, Brian Friel, Caryl Churchill, Tom Murphy, Marina Carr, entre outros. Hoje, os Artistas Unidos trazem a Lisboa (CCB) o díptico "Comemoração" e "A Nova Ordem Mundial", de Harold Pinter, cujos textos foram traduzidos por Paulo Eduardo Carvalho.

No campo académico, era membro integrado do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa da Universidade do Porto e colaborador do Centro de Estudos de Teatro da Universidade de Lisboa e do Centre for English Translation and Anglo-Portuguese Studies da Universidade do Porto.

Foi membro do Conselho Redactorial da revista Sinais de Cena, da direcção da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro e do Comité Executivo da sua congénere Internacional, tendo sido nos últimos anos o Director de Seminários daquele organismo.

quinta-feira, 13 de maio de 2010


Público - ípsilon










À espera de Godot
07.04.2010 - Inês Nadais - Público Y


Três homens no lugar errado, à hora errada, e nenhum "big brother" a olhar por eles, na nova produção do Ensemble - Sociedade de Actores


Os guerreiros de Esparta penteavam os cabelos uns aos outros antes de irem para a guerra, e isso era a coragem: os homens mais valentes do mundo a comportarem-se como mulheres, e depois vitória. Edward, Adam e Michael não são guerreiros de Esparta, não são guerreiros ponto - são pessoas no lugar errado à hora errada, ou seja a caminho do mercado para comprar peras em Beirute, nos dias, às vezes meses e neste caso anos, da Crise dos Reféns -, mas também são os homens mais valentes do mundo, nas alturas em que não são os mais cobardes, em "Alguém Olhará por Mim", a peça do irlandês Frank McGuiness que o Ensemble - Sociedade de Actores estreou ontem numa pequena sala (íamos dizer cela) do Mosteiro de São Bento da Vitória, Porto, com encenação de Carlos Pimenta.

Quando os encontramos estão no chão, confinados a um rectângulo de giz de dois metros por 1,20 onde cabem um colchão, uma manta cinzenta, uma garrafa de água e talvez uma Bíblia, ou então um Alcorão. É meio kit de sobrevivência: para sobreviver realmente ao cativeiro, Edward, Adam e Michael terão de inventar histórias, as suas próprias histórias (verdadeiras ou falsas, vale tudo quando é preciso vencer um tempo que ninguém pode saber quanto tempo tem: relatos de corridas de cavalos, chás com a rainha, noites de copos, cartas à família filmes do Sam Peckinpah em que o Gandhi morria logo na primeira cena, e filmes do Richard Attenborough em que o Gandhi nunca mais morre, todos esses amigos imaginários). "As ficções são uma forma de sobrevivência - enquanto houver homem", nota Carlos Pimenta. Ali há: um irlandês que fala de tudo, menos dos filhos ("Não os conheço muito bem: muito trabalho, muita diversão. Tal pai, tal filho, nesse capítulo: também não conheci o meu pai até ser demasiado tarde"), um americano (ou seja, "um bem precioso") a perder a cabeça, um inglês que depois de enterrar a mulher quis fazer como se nada tivesse acontecido, mas alguma coisa tinha acontecido. "Eles dizem muitas coisas, mas o que quisemos trabalhar aqui foi sobretudo o que eles não dizem. Qual é o segredo deles? Eles inventam coisas para não terem de dizer o que de facto vai dentro deles. Metem a cabeça fora dali, porque a última coisa de que devem falar, se querem continuar vivos, é da sua situação de reféns", explica o encenador.

E, no entanto, é apenas isso que eles são - moedas de troca da Jihad Islâmica, peões no grande tabuleiro de xadrez da geopolítica mundial. Era tentador ir por aí, mas Frank McGuinness não foi: "Beirute também é Belfast, cada um tem o seu Líbano", continua Carlos Pimenta. A "real politik" não estava na agenda do dramaturgo irlandês: o que estava na agenda dele era essa tragédia diária da sobrevivência individual num lugar hostil, longe de tudo, e sobretudo de quem podia querer saber. Coisa que não sabemos como é, mas imaginamos, isso de viver sem ninguém a olhar por nós, e mesmo assim esperar a salvação. É uma coisa que se constrói, aqui: a mão do vizinho do lado, à falta da mão de Deus (ou da mão do bom governo, ou mesmo de Godot, como noutra peça de outro irlandês, Samuel Beckett). Demora o seu tempo, como demorou o seu tempo a saga de Brian Keenan e John McCarthy, os reféns em que McGuinness se baseou, e que de facto alguém acabou por salvar: estas duas horas custam a passar. "Quisemos criar um tempo no espectáculo, e esse tempo sente-se de facto, como um peso", diz o encenador. A uns esse tempo mata, a outros fá-los muito mais fortes.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

A opinião do blog Purple Heart Sessions

http://reflexoesaoluar.blogspot.com/


Quinta-feira, 22 de Abril de 2010
Alguém Olhará por Mim

Ora aqui está a peça que ainda me tolda o pensamento e a causa pela qual nem tenho escrito aqui.



Sábado à noite, no Mosteiro de S. Bento da Vitória, mais propriamente no Claustro (lugar mágico e místico, esse!), vi uma das melhores peças da minha vida. Nessa semana uma professora nossa tinha dito que sabia que um espectáculo a tinha tocado quando não conseguia parar de pensar nele, e eu ainda não consegui esquecer este.
O texto de Frank McGuiness, tradução do fabuloso Paulo Eduardo de Carvalho e com encenação de Carlos Pimenta, mostra-nos três homens de nacionalidades diferentes presos em cativeiro por rebeldes. Um texto dos nossos dias, portanto. E que nos leva a indagar muito sobre a nossa vida, sobre o que faríamos se fossemos nós ali.
E é a loucura que se instala pelas palavras, e a tentativa de escapar através da imaginação para não deixar morrer o espírito. É a música perfeita. É o cenário perfeito.
É rectângulo de giz que nos corta os movimentos. É a nossa identidade posta em causa. A nossa sanidade. A nossa história.


É uma intimidade que se estabelece entre nós e os actores (um trabalho fantástico por parte dos três) e durante duas horas estamos com eles naquele cárcere. Com o coração apertado.


Ainda agora a peça me toca no âmago. E chorei como nunca quando cheguei a casa.

quarta-feira, 7 de abril de 2010





O teatro é a experiência do público
in extremis, in situ, in corpore

A única vida da performance está no presente. A performance não pode ser guardada, gravada,
documentada ou participar na circulação de representações de representações. À medida que a performance procura entrar na economia da reprodutibilidade trai e diminui a expectativa da
sua própria ontologia. […] A performance implica o real através da presença de corpos vivos. Requer empenhamento. Mergulha na possibilidade e desaparece na memória devido à não existência de cópia. Oferece a possibilidade de reapreciar esse vazio.
Peggy Phelan – The Ontology of Performance.


Alguém Olhará por Mim fala‑nos de homens em situações‑limite. Nenhum de nós terá passado quatro anos em cativeiro. Por isso mesmo, movidos pela curiosidade, vimos a este lugar munidos de uma procuração que passamos aos actores na expectativa que nos transportem para um tempo e um lugar que desconhecemos. Sabemos, à partida, que o teatro habita o terreno das ficções e que este espaço que partilhamos nada mais é que um dispositivo que as torna possíveis.
Afinal, mesmo não se parecendo com umasala de teatro, tudo isto não passa de um
artifício. Estamos aqui, com outros que também vieram, e entregamo‑nos ao que os actores nos dizem. Aquilo que nos impõem pode incomodar‑nos. Mas não nos sentimos constrangidos na nossa liberdade. É só no seu exercício pleno que sentimos prazer. Conseguimos, apesar de tudo, estar sozinhos: os filósofos antigos ensinam‑nos que a felicidade completa é aquela que se cumpre no exercício solitário do pensamento. O teatro é uma arte da convenção e a sua percepção valida‑se no (re)conhecimento, por parte do público, dos códigos que a enformam. Mas será que pelo facto de sairmos da sala convencional estaremos a alterar a relação actor/espectador? Justificará isto o redimensionamento da posição daquele que observa edaquele que dá a ver? Pouco importando o lugar, aquilo que acontece no teatro é a “suspensão da vida”. Através desse exercício, o teatro permite dá‑la a ver num corte sincrónico em que aquele que age e aquele que observa coabitam um mesmo tempo e um mesmo espaço. Tornam‑se,assim, cúmplices numa relação que mais não é do que a do reconhecimento do corpo e do tempo do outro.
O teatro era (é!) o lugar onde as pessoas se encontravam para jogar e, tal como em qualquer jogo, obedece a um conjunto de regras que torna viável a assimilação de um determinado padrão. Mas é sobretudo no permanente jogo tensional com a sua estática aceitação que o teatro tem resistido à sua redução enquanto arte de outros tempos. Ele reflecte‑se – como possibilidade única de sobrevivência – nas mudanças experimentadas pelo Homem, consciente de que ao negá‑las morreria enquanto arte. O pior que o teatro pode fazer a si próprio é reclamar‑se de um tempo que já não é deste tempo.
Talvez o seu inesperado vigor advenha, precisamente, da sua condição de arte viva e efémera incapaz de se fixar na certeza de um tempo que ocorre, e o “indecifrável” discurso que produz não seja mais do que discurso em constante mutação – característica tão determinante da nossa contemporaneidade provisória. Daí lhe reconhecermos (e ainda bem) recorrentes sinais de crise. Como nos diz Agamben, “contemporâneo é aquele que fixa o olhar sobre o seu tempo para perceber não as luzes, mas a obscuridade”. •


Carlos Pimenta
27 de Março de 2010 (talvez por ser Dia Mundial do Teatro)






Mosteiro de São Bento da Vitória

8-24 Abril2010



Alguém Olhará Por Mim

de Frank McGuinness

encenação Carlos Pimenta



Estreia já a 8 de Abril, no Mosteiro de São Bento da Vitória, Alguém Olhará por Mim, uma peça de Frank McGuinness, com encenação de Carlos Pimenta. Considerado o mais destacado dramaturgo inglês da sua geração, McGuinness escreve inspirado na história de Brian Keenan, um irlandês que esteve quatro anos em cativeiro, partilhando uma cela no Líbano com um repórter da televisão inglesa e três norte-americanos. Apesar de não ter tido qualquer informação sobre o tema, segundo Keenan não faltaram “as pedras-de-toque da verdade emocional” ao dramaturgo.

Em Alguém Olhará por Mim antagonismos pessoais que representam antagonismos políticos são transmitidos pelos reféns condenados a conviverem em cativeiro: um inglês, um irlandês e um norte-americano. Foram dois os motivos que levaram Frank McGuinness a escrever esta peça: a sua mãe, que não o deixou esquecer os reféns do Líbano, e o facto da mãe de John McCarthy ter morrido antes da libertação do filho, não concretizando o seu último desejo de se despedir dele. Depois das últimas temporadas com clássicos de Tchékhov, Ibsen e Molière, o Ensemble – Sociedade de Actores volta às obras contemporâneas e a Frank McGuinness, que, em 2001, apresentou Dama d’Água encenada por Nuno Carinhas.

Este texto de 1992, que recebeu o Prémio de Melhor Peça Estrangeira pela Associação de Críticos de Nova Iorque, será interpretado por Jorge Pinto, Alberto Magassela e Pedro Galiza. Alguém Olhará por Mim estará em cena de 8 a 24 de Abril no Mosteiro de São Bento da Vitória e poderá ser visto de terça a domingo às 21h30.

Ficha técnica:

Alguém Olhará por Mim

Someone Who’ll Watch Over Me (1992)

de Frank McGuinness


tradução Paulo Eduardo Carvalho

encenação Carlos Pimenta

cenografia João Mendes Ribeiro

figurinos Bernardo Monteiro

desenho de luz José Álvaro Correia

música Ricardo Pinto


interpretação

Jorge Pinto - Edward

Alberto Magassela - Adam

Pedro Galiza - Michael

assistência de encenação e produção Vânia Mendes

produção Ensemble – Sociedade de Actores

duração aproximada [2:00] sem intervalo

classificação etária M/12 anos

Mosteiro de São Bento da Vitória

[8 a 24 Abril 2010]

terça-feira a domingo 21:30


Provações e transformações

Paulo Eduardo Carvalho


Nascido em 1953 (em Bucrana, no condado de Donegal, a norte da República da Irlanda), Frank McGuinness é o mais importante dramaturgo irlandês da geração que sucede à de Brian Friel e Tom Murphy (nascidos, respectivamente, em 1929 e 1935) e que antecede aquela claramente mais jovem que, num arco temporal alargado, integra nomes tão diversos como os de Marina Carr (n. 1964), Enda Walsh (n. 1967), Martin McDonagh e Mark O’Rowe (ambos nascidos em 1970) e ainda Conor McPherson (n. 1971), para só referir alguns dos dramaturgos já representados no nosso país e, desse modo, mais reconhecíveis pelo público português. (Marie Jones e Dermot Bolger, de 1951 e 1959, respectivamente, são os outros dramaturgos da sua geração que também já foram objecto de tradução e representação em Portugal.) McGuinness foi revelado entre nós em 1994, através, justamente, deste Alguém Olhará por Mim (Someone Who’ll Watch Over Me), numa tradução de João Lourenço e Vera San Payo de Lemos e dramaturgia desta última, para um espectáculo produzido pelo Novo Grupo/Teatro Aberto, com encenação de João Lourenço e interpretação de João Perry, Diogo Infante e Orlando Sérgio. No ano de 2001, o Ensemble produziu um outro texto do dramaturgo, o monólogo Dama d’Água (Baglady), com encenação de Nuno Carinhas e interpretação de Emília Silvestre, um memorável espectáculo apresentado no Quartel do Bom Pastor, junto ao Jardim de Arca d’Água, no Porto.

Estas duas únicas produções, a que agora se junta esta nova encenação de Alguém Olhará por Mim, são uma pequena amostra da vasta obra do dramaturgo que inclui já 24 peças originais, argumentos para televisão (Scout e The Hen House) e para cinema (a adaptação de Dancing at Lughnasa/Danças a um Deus Pagão, de Brian Friel), bem como um número impressionante de versões e adaptações de peças dos repertórios clássico e moderno, de autores tão variados como Sófocles, Eurípides, Séneca, Henrik Ibsen, August Strindberg, Anton Tchékhov, Federico García Lorca, Aleksandr Ostróvski, Luigi Pirandello, Bertolt Brecht e Ramón María del Valle-Inclán.

Após algumas experiências literárias, Frank McGuinness estreia-se no teatro em 1982, no palco do Peacock Theatre, a sala mais pequena do Abbey Theatre, o Teatro Nacional irlandês, com a peça The Factory Girls, mas é só em 1985, com a sua incursão na mitologia protestante da Irlanda do Norte, em Observe the Sons of Ulster Marching Towards the Somme (também no Abbey), que alcança um alargado reconhecimento crítico, confirmado nos anos seguintes com peças como Innocence, em torno da figura do pintor italiano seiscentista Michelangelo Merisi da Caravaggio, ou Carthaginians, uma nova, e delirante, interpelação da situação conflituosa então vivida na Irlanda do Norte, desta feita centrada na comunidade católica. O sucesso da estreia, em 1992, no londrino Hampstead Theatre, de Someone Who’ll Watch Over Me marca um novo momento na carreira do dramaturgo, finalmente projectado para um circuito mais internacional, que melhor explica as suas colaborações com estruturas como a Royal Shakespeare Company (Mary and Lizzie, Speaking Like Magpies), o Royal National Theatre (Mutabilitie), e os londrinos Almeida Theatre (There Came a Gypsy Running) e Tricycle Theatre (Greta Garbo Came to Donegal), para além da sua continuada relação com os mais locais Abbey Theatre (The Bird Sanctuary) e Gate Theatre (The Bread Man, Gates of Gold), em Dublin.

É uma carreira variada que lhe tem merecido, por exemplo, ser caracterizado como “o mais radical e experimental dos dramaturgos irlandeses contemporâneos”: “Em todas as suas peças, ele sujeita a sintaxe da linguagem cénica à maior das fragmentações, insistindo na descontinuidade e num destaque formal do discurso íntimo e primevo” (Roche 1994: 11-12). A riqueza e diversidade das suas ficções dramáticas justificam também, amplamente, o facto de, entre 1997 e 2010, e para além de numerosos ensaios, ter sido o objecto de quatro importantes estudos monográficos: The Feast of Famine: The Plays of Frank McGuinness, de Eamonn Jordan; Frank McGuinness and His Theatre of Paradox, de Hiroko Mikami; Contexts for Frank McGuinness’s Drama, de Helen Lojek; e “Celebrating Confusion”: The Theatre of Frank McGuinness, de Kenneth Naly.

A particularidade deste Alguém Olhará por Mim, e a eventual explicação para o seu sucesso internacional, parece prender-se com a simplicidade dramatúrgica e cénica da proposta, quase resumida ao esquematismo de uma anedota: “três homens, um irlandês, um norte-americano e um inglês, encontram-se numa prisão, e o irlandês diz… e depois o norte-americano diz… e o inglês…” Segundo diversos relatos, a ideia para a peça terá partido da convergência da inspiração do próprio dramaturgo e de um desafio de Michael Colgan, já então director do Gate Theatre, em Dublin, em reacção à forte cobertura que a imprensa tinha dado à libertação, em 1990, do irlandês Brian Keenan, após cerca de quatro anos de cativeiro numa cela no Líbano, juntamente com um jornalista da televisão inglesa (John McCarthy) e três outros reféns norte-americanos. Contudo, e como o dramaturgo então repetidamente insistiu, aquele muito mediático episódio de cidadãos ocidentais feitos reféns pela Jihad islâmica funcionou simplesmente como um ponto de partida e a sua peça nunca pretendeu ser uma reflexão sobre a situação política naquela parte do globo, nem a recriação das circunstâncias exactas vividas por Brian Keenan – e das quais o próprio daria um relato pungente em An Evil Cradling, publicado também em 1992 e, em 2003, adaptado ao cinema por John Furse, sob o título Blind Flight.

Não deixa, contudo, de ser um facto relevante que, quando comparada com outras peças do autor – tais como as suas duas anteriores explorações dramáticas da mitologia protestante e da experiência católica na Irlanda do Norte, as já referidas Observe the Sons of Ulster Marching Towards the Somme e Carthaginians –, Alguém Olhará por Mim se apresenta como uma peça que exige um conhecimento muito menos específico da história e da política anglo-irlandesas. Do mesmo modo, a opção pela localização de toda a acção numa cela no Líbano parece apontar para uma espécie de diminuição do “irlandismo” ou da tendência mais auto-reflexiva de muito do teatro irlandês de que McGuinness é herdeiro e continuador – muito embora, e como sugere Helen Lojek, “os autores irlandeses nunca consigam evitar questões, sugestões e insistências sobre a relação das suas obras com as realidades irlandesas contemporâneas” (1995: 354).

Sob o formato de uma peça de câmara, um característico huis clos, no mais concentracionário dos espaços, uma cela, Frank McGuinness aposta numa arriscada estratégia de presentificação dos estereótipos nacionais associados às suas três personagens, para depois avançar para a sua desmontagem, apostando na exploração em profundidade das suas personalidades e mais complexas identidades. (No texto original, o dramaturgo investe ainda num efeito que, por completo, desaparece na sua tradução para qualquer outra língua e cultura: a criação linguística de discursos verosímeis para cada uma das suas personagens, articulando três variedades tão distintas da língua inglesa como o irlandês, o norte-americano e o inglês, demonstrando o efeito de divisão produzido por uma língua comum.) Promovendo de forma quase sistemática os paralelos entre a situação então vivida na Irlanda, em particular na Irlanda do Norte, e o Médio Oriente, numa fusão deliberada entre Beirute e Belfast, o dramaturgo reforça o exame dos estereótipos proposto pela peça, atribuindo ressonância pública e política aos conflitos privados dos seus três cativos.

Numa ficção dramática atravessada pela tragédia e pelo humor, pela solidão e pelo amor, Frank McGuinness confronta os “inimigos” exteriores e interiores das suas personagens, condenando-as – numa espécie de actualização dos mais paradigmáticos Vladimir e Estragon de À Espera de Godot, de Samuel Beckett – a uma sucessão de jogos, de exercícios destinados a passar o tempo e a combater o desespero e as cruéis provações impostas pela sua condição de prisioneiros. São, contudo, estes momentos – em que as personagens escrevem cartas imaginárias, realizam filmes, recordam corridas de cavalos, conduzem um carro pelos ares, entoam canções ou jogam uma partida de ténis – que erguem o dispositivo meta-teatral à condição de mecanismo transformador da identidade: desafiando em paralelo os estereótipos nacionais e os estereótipos de género, o dramaturgo explora as possibilidades performativas da imaginação, o impulso natural para a ficcionalização, para desse modo justificar as transformações por que passam as personagens. É assim, por exemplo, que, como sugere Eamonn Jordan, “a hostilidade entre o irlandês e o inglês é resolvida através da libertação da história, do reconhecimento da dor, da partilha do medo e da assunção da sua humanidade respectiva” (1997: 182). Mas porque nesta peça diversos planos vão funcionando em paralelo, a imagem final em que Edward penteia o cabelo de Michael, reproduzindo o gesto praticado pelos guerreiros espartanos, é também a demonstração eloquente da capacidade de reconhecer a combinação de opostos nas nossas naturezas sexuais, de combinar e integrar os universos da masculinidade e da feminilidade.

Uma outra importante dimensão da tessitura dramatúrgica de Alguém Olhará por Mim prende-se com a sua dinâmica intertextual, que faz da realidade da peça um território profundamente “textualizado”. Na realidade, o dramaturgo entretece a sua ficção dramática com uma ampla variedade de referências e de intertextos, a começar nos domínios mais especializados ou eruditos, de que podem ser exemplo alguns poemas como “The Wanderer”, originalmente escrito em inglês arcaico, “Love Bade Me Welcome”, de George Herbert, e a versão medieval do mito de Orfeu, ou os textos bíblicos do Cântico dos Cânticos e do Livro de Rute e os próprios passos do Alcorão. Mas nesta trama são também urdidas formas e manifestações mais comuns ou divulgadas da cultura popular, entre as quais encontramos as abundantes ficções cinematográficas a que se entregam as personagens – os argumentos tanto podem ser de filmes de Hitchcock, Sam Peckinpah ou Richard Attenborough, como de filmes irlandeses, por exemplo, O Meu Pé Esquerdo –, ou as muitas canções, referidas ou entoadas pelos prisioneiros, como “The Water is Wide”, “Amazing Grace”, “Jingle Bells”, “Run Rabbit Run” ou “Chitty Chitty Bang Bang”; mas também se fala de ténis, de Wimbledon, de futebol, do Manchester United, de corridas de cavalos, de Madonna, da Rainha e da Rainha-Mãe… Se tais matérias reflectem, por um lado, as paixões do próprio autor – afinal, a sua formação universitária foi como linguista e medievalista e chegou a exercer o ensino em diversas universidades irlandesas – e os seus mais alargados interesses culturais, por outro, elas funcionam como a prova – e, novamente, o paralelo dramatúrgico – do próprio trajecto vivido pelas personagens, como se aqueles três prisioneiros fossem, eles próprios, uma espécie de espessos palimpsestos que, em condições extremas, se entregam a novas e audaciosas “reescritas”.

Alguém Olhará por Mim é um exemplo acabado do grande teatro do nosso mundo contemporâneo, na medida em que, como todos os grandes textos, se abre a múltiplas e variadas perspectivas interpretativas: reflexão filtrada e distanciada da condição nacional irlandesa, das suas turbulentas aflições identitárias e dos enquistados estereótipos que estão na base de tão prolongados conflitos, a peça funciona também, senão mesmo sobretudo, como uma mais ampla meditação dramatizada sobre as nossas “prisões” interiores, mas também os nossos gestos de desafio à hostilidade, os momentos de intimidade e de solidariedade que podem contribuir para resoluções de mais positiva convergência. Edward e Michael, o irlandês e o inglês desta ficção de Frank McGuinness, mostram-se aprisionados tanto pelos seus raptores libaneses como pelas suas próprias atitudes tradicionais de um para com o outro; e, nesse sentido, a imagem final da peça é tanto o testemunho de um espaço para uma eventual solução harmoniosa dos conflitos entre as duas nações que cada um deles representa, como uma espécie de encontro sublimado para lá de todas as condicionantes associadas aos seus papéis sexuais. Numa magnífica demonstração do exemplo beckettiano já invocado, o dramaturgo constrói um texto cuja acção dramática é sustida simplesmente pelo interesse do espectador nos estados psicológicos das personagens, nas suas oscilações, invenções e resoluções. A demonstração eloquente parece ser a de que não será por falta de matéria cultural que a humanidade não poderá resolver os seus impasses, tudo dependendo, para além das circunstâncias, da nossa capacidade comum de reescrever e de imaginar de novo os muitos papéis de que nos vamos fazendo.

A promessa encerrada no título da peça – e roubada a um verso de uma canção famosa de George e Ira Gershwin, “Someone to Watch Over Me”, de 1926, imortalizada em vozes tão distintas como as de Ella Fitzgerald ou Frank Sinatra – é a de que haverá sempre alguém a olhar por nós: trata-se de uma ideia esperançosa e estimulante, infelizmente contradita por alguns acontecimentos da própria peça, como a morte de Adam, mas também reforçada pela dinâmica gerada com a sua ausência. Na verdade, as circunstâncias do cativeiro destas personagens evoluem de uma primeira fase de reticência e de hostilidade aberta para uma espécie de sistema de apoio psicológico mútuo até à manifestação final de puro amor. Mais do que simples boas intenções, trata-se da demonstração imaginativa de uma possibilidade de ultrapassagem das barreiras artificiais de nação, de cultura e de género: o que certamente poderá continuar a estar entre as expectativas legítimas associadas ao exercício artístico e, muito particularmente, à criação teatral, esse domínio liminar, por definição, em que o real e a ficção se cruzam e interceptam de forma singularmente poderosa.

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