sábado, 9 de outubro de 2010

Dueto para Um - Texto Programa



Natureza humana

Carlos Pimenta

Poderá Stephanie Abrahams ainda existir na ausência progressiva de um corpo que lhe impede a realização dos actos determinados pela consciência? Numa época – a nossa – em que o luto do corpo se vai fazendo na virtualidade de uma existência a que os avanços tecnológicos e científicos dão uma outra identidade (in)corpórea, para onde relegamos o Humano?

Stephanie procura resgatar-se da impossibilidade física que lhe condiciona o acto e o pensamento. Como a própria afirma, “é impossível mudar esta condição com determinação”. Stepanhie está dependente da inoperacionalidade de um corpo que a projecta na existência – no mundo – lugar do seu refúgio enquanto ser. Confrontada com essa impossibilidade, recusa-se a aceitar uma outra situação e encaminha-se para o acto último que a conduzirá à negação da sua manifestação num mundo que já não lhe surge sequer como propósito da própria vida.

O Homem é um ser no mundo – sozinho não existe – e é pela afirmação da vontade que vai adiando a inevitabilidade da morte. Para Stephanie, é precisamente a sua condição humana que impede, agora, que a sua vontade se afirme.

Nesta luta de milhares de anos para ultrapassar a nossa condição biológica, relembramo-nos constantemente enquanto seres na natureza. Contudo, não o fazemos para dela nos aproximarmos, mas, sim, para contra ela lutarmos. Descartada a ideia de Deus, as conquistas do homem são, tal como diz Feldmann, “o seu propósito e a sua recompensa”.

Stepanhie descobriu o seu propósito na música e na arte. Para ela, o violino não é um modo de vida, é onde vive. Com ele construiu um mundo inteiramente seu. Para alguns isto será fantasia mas, para ela, é esse o mundo real que construiu para se pacificar da “dor e da mágoa e da perda e das terríveis mudanças”.

Para Stephanie a arte é um exercício de legitimação, de sublimação, no qual procura reencontrar-se consigo mesma. Sem esse exercício interrompe-se a sua caminhada no mundo. Sabemos que não nos é possível negar a nossa condição biológica mas, sabemos, também, que a finalidade da existência se cumpre naquilo que é a nossa natureza racional, moral e espiritual.

Sem possibilidade de comunicar com os outros pelo exercício pleno da sua arte, Stephanie considera que a existência não faz sentido: porque é somente na sua possibilidade de expressão que encontra sentido para a vida.

“Senhora Abrahams, sabe qual é o sentido da vida?” – pergunta Feldmann do seu lugar de observador que lhe proporciona objectividade e clarividência. A resposta está no longo discurso em que, ele próprio, se revela enquanto Homem. Mas está, também, nas palavras de António Damásio que Feldmann, certamente, subscreveria:

“O que quer que inventemos, desde as normas da ética e do direito, passando pela música e literatura, até à ciência e tecnologia, é directamente inspirado pelas revelações da existência que a consciência nos oferece. […] O drama da condição humana deriva unicamente da consciência. […] Melhorar o nosso quinhão de existência é precisamente aquilo em que tem consistido a civilização, principal consequência da consciência e, desde há pelo menos três mil anos, com mais ou menos sucesso, melhorar a existência é aquilo que a civilização tem vindo a tentar”.

Em Dueto para Um, Stephanie trava uma dura batalha contra si própria. A seu lado, Feldmann procura ajudá-la com uma “arma” cada vez mais esquecida: saber ouvir.

Outubro de 2010

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