segunda-feira, 6 de abril de 2009

Dois Homens - crítica Time Out


Dois Homens Teatro de AlmadaTeatro K., a personagem, tem um grande problema: vive o terror da culpa e da humilhação. Ivo Alexandre, o actor, na noite de quarta-feira da semana passada, teve também o seu contratempo: representou para uma turma de liceais. E apesar de idêntica ser a pressão a que se sujeitam, o homem, com estóico brio e particular dedicação, saiu-se melhor do que a personagem que interpreta.
No fundo, o que se passa em Dois Homens é um cidadão construir literalmente a prisão metafórica em que se encontra. É isso que acontece em palco quando K., fechado no seu escritório, se queixa de perseguição, lamentando a sua sorte, real ou imaginária, enquanto metodicamente constrói o seu cárcere, painel sobre painel até desaparecer do olhar do público e dele só restar uma sombra ocasional e uma voz. Isolado, preparado para o esquecimento, senhor de uma dor que não se deseja, quase sempre porque muito secretamente se partilha em silêncio conformista, K., ainda assim, não pára de falar, de fustigar e fustigar-se em correntes contínuas de estupefacção, resignação e cólera pela sua desgraçada condição. Uma ladainha pungente que a representação, envolvida na languidez da música dos Dead Combo, torna por vezes hipnótica, outras vezes comovente vulcão de sentimentos banhado pela emoção desenhada em luz por José Carlos Nascimento. É um destino que faz K. sentir-se desarmado num mundo ameaçador, e paradoxalmente culpado por dali não escapar pelos seus próprios meios, limitados pela educação e o condicionamento social, castrados por uma força superior ou uma paranóia singela. Pouco mais de uma década depois de se estrear, com interpretação de Luís Gaspar, no cenário da Antiga Fábrica Mundet, no Seixal, Dois Homens, de José Maria Vieira Mendes (n. 1976), é um original criado a partir de O Processo, Um Artista da Fome, O Castelo, O Covil, Colónia Penal e outros textos de Franz Kafka (1883-1924) que permanece um enérgico exercício de exposição e expurgação dos – por assim dizer – males que habitam as profundezas da alma, o lugar onde crescem os pesadelos e, se calhar, as chamadas “doenças sociais”. Vista através da peneira do tempo, esta parábola sobre a subordinação e a procura de um lugar a que chamar plenamente seu, não afirma apenas a pujança do pensamento e da escrita de Kafka que a inspiram, mas evidencia também o fulgor de um dramaturgo a construir-se como autor. A peça, agora revista por Carlos Pimenta, é uma narrativa escorreita e emocional em que o encenador utiliza com eficácia os mecanismos cénicos, fazendo do cenário de João Ribeiro instrumento fundamental de comunicação nesta viagem pelo absurdo, em que a tensão dramática, realçada pela decisiva e empenhada interpretação de Ivo Alexandre, faz de um vórtice de palavras uma cornucópia de sensações amargas, todavia lúcidas.
Rui Monteiro
terça-feira, 31 de Março de 2009