Em 1996, Carlos Pimenta encenou Moderato Cantabile no Teatro Nacional D. Maria II, onde o teatro de Duras vê reafirmado um trabalho de ocultação e de sofrimento, da impossibilidade do dizer.
A pequena história dos amantes sem destino
texto Carlos Pimenta
fotografia Margarida Dias
Um crime passional. Um homem que mata uma mulher. Um bar operário. Outro homem e outra mulher encontram nas palavras com que procuram compreender esse crime, a razão do seu regresso sistemático ao local onde tudo se passou. Estabelecem entre si uma rotina obsessiva na expectativa de um acontecimento que não surge e lhes permita preencher o silêncio que se insinua como desejo no aproximar dos corpos. O que se passará com aquele homem que o impede de dizer? Quem será aquela mulher que se esconde no excesso de palavras? Quem pode nomear o que entre eles se passa? Que futuro lhes é possível naqueles encontros em que o tempo fica à espera que um qualquer destino se revele? Talvez a sua história aconteça somente num ligeiro roçar da pele, nos olhares que trocam e lhes param o pensamento, num beijo que quase se deixa ver como prova da existência dos dois corpos.
No meio de tão pouca coisa há uma patroa que observa, um marido que não vemos, uma criança que aprende a tocar piano e um escândalo que se insinua.
O teatro de Duras vive no silêncio, no não dito. Não é um teatro de acção, de acontecimentos. É um teatro da espera. Tal como afirma o Vice-Cônsul de India Song “É preciso que qualquer coisa aconteça entre nós”.
Na banalidade das pequenas coisas da vida só nos seus extremos se revela o ser: no amor, ou no crime. A escrita de Duras vive na procura desta radicalidade e por ser tão verdadeira lhe chamamos cruel, é, como referiu Ernesto Sampaio, algo que nos “deixa no espírito um surdo rasto de fósforo a arder”.
Quando em 1996 dirigi Moderato Cantabile, procurámos reforçar no espectador a sua condição de voyeur. Entre ele e os actores a barreira invisível de uma montra de café acentuava a distância relativa a uma intimidade à qual não pertencia: o vidro permite ver mas não permite ouvir ou tocar. Lá dentro, os actores viviam as suas histórias. Do lado de fora, o público recebia-as na mediação que o som marcadamente cinematográfico impunha e que transportava o real para um imaginário que o cinema, exemplarmente, torna possível. O espaço onde se desenrolava Moderato Cantabile era claramente um dispositivo: um interface entre materialidade e imaginário que permitia, tal como no processo de descodificação do simbólico da escrita, reorganizar os seus elementos e entregá-los à subjectividade, que é o espaço próprio para o activar das ficções.
Tínhamos assim dois planos: um espaço físico que correspondia ao estabelecimento do lugar do espectador e do lugar do actor, e, um espaço imaginário que correspondia à intersecção dos dois lugares. E era neste espaço que tudo se passava. Equivalia, de certa forma, ao plano individual da leitura. Um narrador em off lembrava-nos, na sua ausência física, as palavras enquanto escrita. O teatro tem por função dar a ver. Em Moderato Cantabile procurámos, sobretudo, ocultar.
A obra de Duras é, também, toda ela, um trabalho de ocultação e de sofrimento, da impossibilidade do dizer: daí o rigor na construção das frases, na economia das palavras. É, uma escrita do interdito, da subversão, das trevas. O que essa escrita revela deve ser lido naquilo que não diz, no grande silêncio que se constitui ele próprio como acontecimento e nos contém no impulso imediato de o querer mostrar. Ao encenador compete organizar o espaço desse silêncio: o espaço da “insinuação do terrível no interior do banal”.
A versão cénica de Moderato Cantabile estreou em 7 de Julho de 1996, na Sala Estúdio do Teatro Nacional de D. Maria II. Em 1995, Marguerite Duras consentiu na realização do espectáculo. Foi a primeira vez que autorizou a adaptação teatral de uma obra sua sem que ela própria a tivesse efectuado. Esta situação, absolutamente excepcional, deveu-se à qualidade da tradução e versão cénica da autoria de Ernesto Sampaio e ao empenho posto por Eduardo Prado Coelho nas muitas conversas que manteve com a autora e com Yann Andrea. Aos dois intelectuais portugueses, entretanto desaparecidos, a minha homenagem.
Moderato Cantabile
Autor: Marguerite Duras; Tradução e versão cénica: Ernesto Sampaio;
Encenação: Carlos Pimenta; Cenário: Nuno Carinhas; Música original:
Rodrigo Leão; Figurinos: Marie Briet; Desenho de som: Paulo Abelho;
Desenho de Luz: Isabel Aboim; Apoio vocal: Luis Madureira; Com: Fernanda
Alves – A Patroa Mónica Calle – Anne Rogério Samora – Chauvin Diogo
Carvalho / Filipe Narciso – A Criança João Reis – Voz Off
Este texto foi publicado na OBSCENA #22.
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