À espera de Godot
07.04.2010 - Inês Nadais - Público Y
Três homens no lugar errado, à hora errada, e nenhum "big brother" a olhar por eles, na nova produção do Ensemble - Sociedade de Actores
Os guerreiros de Esparta penteavam os cabelos uns aos outros antes de irem para a guerra, e isso era a coragem: os homens mais valentes do mundo a comportarem-se como mulheres, e depois vitória. Edward, Adam e Michael não são guerreiros de Esparta, não são guerreiros ponto - são pessoas no lugar errado à hora errada, ou seja a caminho do mercado para comprar peras em Beirute, nos dias, às vezes meses e neste caso anos, da Crise dos Reféns -, mas também são os homens mais valentes do mundo, nas alturas em que não são os mais cobardes, em "Alguém Olhará por Mim", a peça do irlandês Frank McGuiness que o Ensemble - Sociedade de Actores estreou ontem numa pequena sala (íamos dizer cela) do Mosteiro de São Bento da Vitória, Porto, com encenação de Carlos Pimenta.
Quando os encontramos estão no chão, confinados a um rectângulo de giz de dois metros por 1,20 onde cabem um colchão, uma manta cinzenta, uma garrafa de água e talvez uma Bíblia, ou então um Alcorão. É meio kit de sobrevivência: para sobreviver realmente ao cativeiro, Edward, Adam e Michael terão de inventar histórias, as suas próprias histórias (verdadeiras ou falsas, vale tudo quando é preciso vencer um tempo que ninguém pode saber quanto tempo tem: relatos de corridas de cavalos, chás com a rainha, noites de copos, cartas à família filmes do Sam Peckinpah em que o Gandhi morria logo na primeira cena, e filmes do Richard Attenborough em que o Gandhi nunca mais morre, todos esses amigos imaginários). "As ficções são uma forma de sobrevivência - enquanto houver homem", nota Carlos Pimenta. Ali há: um irlandês que fala de tudo, menos dos filhos ("Não os conheço muito bem: muito trabalho, muita diversão. Tal pai, tal filho, nesse capítulo: também não conheci o meu pai até ser demasiado tarde"), um americano (ou seja, "um bem precioso") a perder a cabeça, um inglês que depois de enterrar a mulher quis fazer como se nada tivesse acontecido, mas alguma coisa tinha acontecido. "Eles dizem muitas coisas, mas o que quisemos trabalhar aqui foi sobretudo o que eles não dizem. Qual é o segredo deles? Eles inventam coisas para não terem de dizer o que de facto vai dentro deles. Metem a cabeça fora dali, porque a última coisa de que devem falar, se querem continuar vivos, é da sua situação de reféns", explica o encenador.
E, no entanto, é apenas isso que eles são - moedas de troca da Jihad Islâmica, peões no grande tabuleiro de xadrez da geopolítica mundial. Era tentador ir por aí, mas Frank McGuinness não foi: "Beirute também é Belfast, cada um tem o seu Líbano", continua Carlos Pimenta. A "real politik" não estava na agenda do dramaturgo irlandês: o que estava na agenda dele era essa tragédia diária da sobrevivência individual num lugar hostil, longe de tudo, e sobretudo de quem podia querer saber. Coisa que não sabemos como é, mas imaginamos, isso de viver sem ninguém a olhar por nós, e mesmo assim esperar a salvação. É uma coisa que se constrói, aqui: a mão do vizinho do lado, à falta da mão de Deus (ou da mão do bom governo, ou mesmo de Godot, como noutra peça de outro irlandês, Samuel Beckett). Demora o seu tempo, como demorou o seu tempo a saga de Brian Keenan e John McCarthy, os reféns em que McGuinness se baseou, e que de facto alguém acabou por salvar: estas duas horas custam a passar. "Quisemos criar um tempo no espectáculo, e esse tempo sente-se de facto, como um peso", diz o encenador. A uns esse tempo mata, a outros fá-los muito mais fortes.
07.04.2010 - Inês Nadais - Público Y
Três homens no lugar errado, à hora errada, e nenhum "big brother" a olhar por eles, na nova produção do Ensemble - Sociedade de Actores
Os guerreiros de Esparta penteavam os cabelos uns aos outros antes de irem para a guerra, e isso era a coragem: os homens mais valentes do mundo a comportarem-se como mulheres, e depois vitória. Edward, Adam e Michael não são guerreiros de Esparta, não são guerreiros ponto - são pessoas no lugar errado à hora errada, ou seja a caminho do mercado para comprar peras em Beirute, nos dias, às vezes meses e neste caso anos, da Crise dos Reféns -, mas também são os homens mais valentes do mundo, nas alturas em que não são os mais cobardes, em "Alguém Olhará por Mim", a peça do irlandês Frank McGuiness que o Ensemble - Sociedade de Actores estreou ontem numa pequena sala (íamos dizer cela) do Mosteiro de São Bento da Vitória, Porto, com encenação de Carlos Pimenta.
Quando os encontramos estão no chão, confinados a um rectângulo de giz de dois metros por 1,20 onde cabem um colchão, uma manta cinzenta, uma garrafa de água e talvez uma Bíblia, ou então um Alcorão. É meio kit de sobrevivência: para sobreviver realmente ao cativeiro, Edward, Adam e Michael terão de inventar histórias, as suas próprias histórias (verdadeiras ou falsas, vale tudo quando é preciso vencer um tempo que ninguém pode saber quanto tempo tem: relatos de corridas de cavalos, chás com a rainha, noites de copos, cartas à família filmes do Sam Peckinpah em que o Gandhi morria logo na primeira cena, e filmes do Richard Attenborough em que o Gandhi nunca mais morre, todos esses amigos imaginários). "As ficções são uma forma de sobrevivência - enquanto houver homem", nota Carlos Pimenta. Ali há: um irlandês que fala de tudo, menos dos filhos ("Não os conheço muito bem: muito trabalho, muita diversão. Tal pai, tal filho, nesse capítulo: também não conheci o meu pai até ser demasiado tarde"), um americano (ou seja, "um bem precioso") a perder a cabeça, um inglês que depois de enterrar a mulher quis fazer como se nada tivesse acontecido, mas alguma coisa tinha acontecido. "Eles dizem muitas coisas, mas o que quisemos trabalhar aqui foi sobretudo o que eles não dizem. Qual é o segredo deles? Eles inventam coisas para não terem de dizer o que de facto vai dentro deles. Metem a cabeça fora dali, porque a última coisa de que devem falar, se querem continuar vivos, é da sua situação de reféns", explica o encenador.
E, no entanto, é apenas isso que eles são - moedas de troca da Jihad Islâmica, peões no grande tabuleiro de xadrez da geopolítica mundial. Era tentador ir por aí, mas Frank McGuinness não foi: "Beirute também é Belfast, cada um tem o seu Líbano", continua Carlos Pimenta. A "real politik" não estava na agenda do dramaturgo irlandês: o que estava na agenda dele era essa tragédia diária da sobrevivência individual num lugar hostil, longe de tudo, e sobretudo de quem podia querer saber. Coisa que não sabemos como é, mas imaginamos, isso de viver sem ninguém a olhar por nós, e mesmo assim esperar a salvação. É uma coisa que se constrói, aqui: a mão do vizinho do lado, à falta da mão de Deus (ou da mão do bom governo, ou mesmo de Godot, como noutra peça de outro irlandês, Samuel Beckett). Demora o seu tempo, como demorou o seu tempo a saga de Brian Keenan e John McCarthy, os reféns em que McGuinness se baseou, e que de facto alguém acabou por salvar: estas duas horas custam a passar. "Quisemos criar um tempo no espectáculo, e esse tempo sente-se de facto, como um peso", diz o encenador. A uns esse tempo mata, a outros fá-los muito mais fortes.
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