Dois Homens ou o espectro do medo, do medo do medo?
Uma peça de teatro asfixiante, uma exposição singular, um disco inédito dos Dead Combo. O Teatro Azul estreia hoje este tríptico artístico baseado na vida e obra de Franz Kafka. O RASCUNHO esteve nos ensaios da peça.
A peça de José Maria Vieira Mendes surge a partir dos textos de Franz Kafka. Estreada em 1998, revive agora com outro corpo, outro cenário, outra envolvência, lá para os lados do Teatro Azul, em Lisboa. A interpretação é de Ivo Alexandre e a encenação de Carlos Pimenta.
Dois Homens estreia hoje e é exibida às 21h30, de quarta a domingo, até 5 de Abril. O enquadramento sonoro foi concebido pelos Dead Combo. (O disco com três faixas inéditas estará à venda em exclusivo no Teatro Municipal de Almada.)
Para compor o tríptico artístico, João Ribeiro, responsável pelo cenário da peça, inaugura hoje às 18h00 uma exposição de pintura inspirada em Amerika, um dos romances inacabados de Kafka: Oklahoma. A indefinição geográfica patente na obra do checoslovaco que sempre viveu Praga, mas construiu um imaginário americano, é o pano de fundo para o trabalho artístico, tocado pela ironia crítica.
Dois homens – um prenúncio
O RASCUNHO assistiu a um dos ensaios da peça e esteve à conversa com o encenador, Carlos Pimenta (que nos disponibilizou um texto crítico da sua autoria sobre Dois Homens). Entramos na Sala Experimental e somos voyeurs da degradação. Mais próximos do que deveríamos estar, assistimos passivos à asfixia do espectáculo ou talvez ao espectáculo da asfixia.
Quem está aí? Quem está ali? O discurso perseverante percorre O Processo, O Castelo, Colónia Penal, Um Artista da Fome, entre outros escritos kafkianos. Amontoar fragmentário de pedaços de obra, pedaços de afecto, pedaços de vida e pedaços de papel. Vida ou obra? A eterna controvérsia. Estará Kafka ali presente ou apenas uma personagem? Dois Kafkas ou nenhum? Talvez aquela figura transversal a tantas das suas obras – K.
«O desejo de o nomear – ainda que por uma inicial sem rosto e sem gente – revela o inconfessado propósito de o desterrar para as páginas de um livro conhecido ou para um palco de teatro», explica Carlos Pimenta.
O cenário enreda-nos na teia. Cada vez mais apertado, sombrio e inóspito, «o mundo vai encolhendo com os dias», como diz K. A encenação torna-o cada vez menos visível. Não há outra luz. Não há saída. Cresce o niilismo. Um pulsar apertado pelo medo em espiral circunspecta. «Tenho fome. Medo do medo, do medo do medo», refere K.
O solilóquio é diálogo, o paradoxo a única constante. O eco dentro de si mesmo. O querer e não querer. O deteriorar provocado pela indecisão, pela impossibilidade de habitar simultaneamente os dois pratos da balança. Ter o sentimento de estar preso e ao mesmo tempo outro. «Se estivesse solto seria bem pior», diz K. Mantém-se uma discussão que asfixia, externamente interna, onde habitam os espectros de um passado presente dos quais não é possível escapar. A personagem ressuscita-os nos seus temores: «o sol e todo o mundo espreita a parte de trás da minha cabeça».
Nas falas delirantes, no sentimento persecutório, na obcecada tentativa de fuga pelo aprisionamento, há traços marcados na nossa realidade. «Vivemos – tal como K. – num imenso panóptico que nos mantém na incerteza sobre a presença concreta do vigilante e nos induz a comportarmo-nos como se permanentemente vigiados» reflecte Carlos Pimenta.
K. refugia-se na escrita. O refúgio torna-se prisão. Sentimos sofrimento no teclar nervoso. Fica a questão de quem dirigiu e encenou a peça: «O homem a quem chamamos K. é um homem (dois homens?) prisioneiro da sua própria narrativa. Mas… e não é possível libertá-lo?»
http://rascunho.net/artigo.php?id=2471
Elsa Caetano
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