quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Dois Homens







A Máquina, o gato e o rato


“Nós não temos qualquer noção de liberdade” diz o homem que pensamos chamar-se K. O desejo de o nomear - ainda que por uma inicial sem rosto e sem gente - revela o inconfessado propósito de o desterrar para as páginas de um livro conhecido ou para um palco de teatro. Evitaremos, assim, o confronto directo com a sua cruel proclamação. Condenados a obedecer, é na ficção que achamos algum conforto como se acolhidos por uma comunidade de refugiados em território emprestado. Schiller - que não conheceu o homem a quem poderemos chamar K. - dizia que as leis do teatro começam onde acabam as leis da sociedade. O homem – e também aquele a quem queremos chamar K. - carrega consigo a culpa e a punição que já são constitutivas da sua consciência abstracta. Vivemos – tal como K. - num imenso panóptico que nos mantém na incerteza sobre a presença concreta do vigilante e nos induz a comportarmo-nos como se permanentemente vigiados. A nossa sociedade disciplinar mantém-nos numa espécie de “sistema jurídico unipessoal” no qual sentença e pena decorrem sem intermediação e em que o juiz é simultaneamente o condenado. Notável rentabilização de meios e recursos só possível graças à invenção do pecado original!
Enquanto ser social, o homem vive no paradoxo de um desejo de liberdade e da sua contingência. E é, seguramente, este paradoxo que leva K. a afirmar “ (…) eu sempre respeitei, nunca duvidem da culpa, jamais duvidem da culpa e das ordens e das sentenças e das cores e por aí fora, sim senhor. Porque eu sempre respeitei, eu respeito as ordens (muito bem, muito bem). Nós jamais podemos duvidar da culpa, jamais, porque a nossa culpa, a nossa culpa vem dos outros”. Mas… isso que nos interessa? Quanto a K., já resolvemos encerrá-lo numa ficção. O seu confronto consigo mesmo é, para nós, uma representação. A sua qualidade enquanto personagem coloca-o fora do mundo real que habitamos e no qual as regras do bom senso garantem a homeostasia do sistema e a sua sobrevivência. Contudo, não podemos deixar de nos perguntar se não estará K. ainda demasiado próximo de nós? Não será essa quase ausência de nome que lhe dá uma universalidade que nos permite reconhecê-lo fora da tranquilidade das páginas impressas de onde emerge para, numa presença insidiosa e obsessiva, nos lembrar que fomos nós que o criámos e encerrámos na ficção? Afinal, quem é K.? Talvez um homem no seu labirinto, um funcionário que “ se faz centro de diversas narrativas, quase todas elas incompletas”. Incompletu: não acabado, imperfeito, truncado. O homem a quem chamamos K. é um homem (dois homens?) prisioneiro da sua própria narrativa. Mas… e não é possível libertá-lo?

“Só tens que mudar de direcção”, diz o gato.
“Honrai os vossos superiores”, diz a Máquina.
O mundo, disse o rato, o mundo vai encolhendo com os dias, disse o rato.

Têm razão, o gato e o rato!



Carlos Pimenta, Fevereiro de 2009

Sem comentários: