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Quinta-feira, 22 de Abril de 2010
Alguém Olhará por Mim
Ora aqui está a peça que ainda me tolda o pensamento e a causa pela qual nem tenho escrito aqui.
Sábado à noite, no Mosteiro de S. Bento da Vitória, mais propriamente no Claustro (lugar mágico e místico, esse!), vi uma das melhores peças da minha vida. Nessa semana uma professora nossa tinha dito que sabia que um espectáculo a tinha tocado quando não conseguia parar de pensar nele, e eu ainda não consegui esquecer este.
O texto de Frank McGuiness, tradução do fabuloso Paulo Eduardo de Carvalho e com encenação de Carlos Pimenta, mostra-nos três homens de nacionalidades diferentes presos em cativeiro por rebeldes. Um texto dos nossos dias, portanto. E que nos leva a indagar muito sobre a nossa vida, sobre o que faríamos se fossemos nós ali.
E é a loucura que se instala pelas palavras, e a tentativa de escapar através da imaginação para não deixar morrer o espírito. É a música perfeita. É o cenário perfeito.
É rectângulo de giz que nos corta os movimentos. É a nossa identidade posta em causa. A nossa sanidade. A nossa história.
É uma intimidade que se estabelece entre nós e os actores (um trabalho fantástico por parte dos três) e durante duas horas estamos com eles naquele cárcere. Com o coração apertado.
Ainda agora a peça me toca no âmago. E chorei como nunca quando cheguei a casa.
quinta-feira, 22 de abril de 2010
quarta-feira, 7 de abril de 2010
O teatro é a experiência do público
– in extremis, in situ, in corpore –
A única vida da performance está no presente. A performance não pode ser guardada, gravada,
documentada ou participar na circulação de representações de representações. À medida que a performance procura entrar na economia da reprodutibilidade trai e diminui a expectativa da
sua própria ontologia. […] A performance implica o real através da presença de corpos vivos. Requer empenhamento. Mergulha na possibilidade e desaparece na memória devido à não existência de cópia. Oferece a possibilidade de reapreciar esse vazio.
Peggy Phelan – The Ontology of Performance.
– in extremis, in situ, in corpore –
A única vida da performance está no presente. A performance não pode ser guardada, gravada,
documentada ou participar na circulação de representações de representações. À medida que a performance procura entrar na economia da reprodutibilidade trai e diminui a expectativa da
sua própria ontologia. […] A performance implica o real através da presença de corpos vivos. Requer empenhamento. Mergulha na possibilidade e desaparece na memória devido à não existência de cópia. Oferece a possibilidade de reapreciar esse vazio.
Peggy Phelan – The Ontology of Performance.
Alguém Olhará por Mim fala‑nos de homens em situações‑limite. Nenhum de nós terá passado quatro anos em cativeiro. Por isso mesmo, movidos pela curiosidade, vimos a este lugar munidos de uma procuração que passamos aos actores na expectativa que nos transportem para um tempo e um lugar que desconhecemos. Sabemos, à partida, que o teatro habita o terreno das ficções e que este espaço que partilhamos nada mais é que um dispositivo que as torna possíveis.
Afinal, mesmo não se parecendo com umasala de teatro, tudo isto não passa de um
artifício. Estamos aqui, com outros que também vieram, e entregamo‑nos ao que os actores nos dizem. Aquilo que nos impõem pode incomodar‑nos. Mas não nos sentimos constrangidos na nossa liberdade. É só no seu exercício pleno que sentimos prazer. Conseguimos, apesar de tudo, estar sozinhos: os filósofos antigos ensinam‑nos que a felicidade completa é aquela que se cumpre no exercício solitário do pensamento. O teatro é uma arte da convenção e a sua percepção valida‑se no (re)conhecimento, por parte do público, dos códigos que a enformam. Mas será que pelo facto de sairmos da sala convencional estaremos a alterar a relação actor/espectador? Justificará isto o redimensionamento da posição daquele que observa edaquele que dá a ver? Pouco importando o lugar, aquilo que acontece no teatro é a “suspensão da vida”. Através desse exercício, o teatro permite dá‑la a ver num corte sincrónico em que aquele que age e aquele que observa coabitam um mesmo tempo e um mesmo espaço. Tornam‑se,assim, cúmplices numa relação que mais não é do que a do reconhecimento do corpo e do tempo do outro.
O teatro era (é!) o lugar onde as pessoas se encontravam para jogar e, tal como em qualquer jogo, obedece a um conjunto de regras que torna viável a assimilação de um determinado padrão. Mas é sobretudo no permanente jogo tensional com a sua estática aceitação que o teatro tem resistido à sua redução enquanto arte de outros tempos. Ele reflecte‑se – como possibilidade única de sobrevivência – nas mudanças experimentadas pelo Homem, consciente de que ao negá‑las morreria enquanto arte. O pior que o teatro pode fazer a si próprio é reclamar‑se de um tempo que já não é deste tempo.
Talvez o seu inesperado vigor advenha, precisamente, da sua condição de arte viva e efémera incapaz de se fixar na certeza de um tempo que ocorre, e o “indecifrável” discurso que produz não seja mais do que discurso em constante mutação – característica tão determinante da nossa contemporaneidade provisória. Daí lhe reconhecermos (e ainda bem) recorrentes sinais de crise. Como nos diz Agamben, “contemporâneo é aquele que fixa o olhar sobre o seu tempo para perceber não as luzes, mas a obscuridade”. •
Afinal, mesmo não se parecendo com umasala de teatro, tudo isto não passa de um
artifício. Estamos aqui, com outros que também vieram, e entregamo‑nos ao que os actores nos dizem. Aquilo que nos impõem pode incomodar‑nos. Mas não nos sentimos constrangidos na nossa liberdade. É só no seu exercício pleno que sentimos prazer. Conseguimos, apesar de tudo, estar sozinhos: os filósofos antigos ensinam‑nos que a felicidade completa é aquela que se cumpre no exercício solitário do pensamento. O teatro é uma arte da convenção e a sua percepção valida‑se no (re)conhecimento, por parte do público, dos códigos que a enformam. Mas será que pelo facto de sairmos da sala convencional estaremos a alterar a relação actor/espectador? Justificará isto o redimensionamento da posição daquele que observa edaquele que dá a ver? Pouco importando o lugar, aquilo que acontece no teatro é a “suspensão da vida”. Através desse exercício, o teatro permite dá‑la a ver num corte sincrónico em que aquele que age e aquele que observa coabitam um mesmo tempo e um mesmo espaço. Tornam‑se,assim, cúmplices numa relação que mais não é do que a do reconhecimento do corpo e do tempo do outro.
O teatro era (é!) o lugar onde as pessoas se encontravam para jogar e, tal como em qualquer jogo, obedece a um conjunto de regras que torna viável a assimilação de um determinado padrão. Mas é sobretudo no permanente jogo tensional com a sua estática aceitação que o teatro tem resistido à sua redução enquanto arte de outros tempos. Ele reflecte‑se – como possibilidade única de sobrevivência – nas mudanças experimentadas pelo Homem, consciente de que ao negá‑las morreria enquanto arte. O pior que o teatro pode fazer a si próprio é reclamar‑se de um tempo que já não é deste tempo.
Talvez o seu inesperado vigor advenha, precisamente, da sua condição de arte viva e efémera incapaz de se fixar na certeza de um tempo que ocorre, e o “indecifrável” discurso que produz não seja mais do que discurso em constante mutação – característica tão determinante da nossa contemporaneidade provisória. Daí lhe reconhecermos (e ainda bem) recorrentes sinais de crise. Como nos diz Agamben, “contemporâneo é aquele que fixa o olhar sobre o seu tempo para perceber não as luzes, mas a obscuridade”. •
Carlos Pimenta
27 de Março de 2010 (talvez por ser Dia Mundial do Teatro)
Mosteiro de São Bento da Vitória
8-24 Abril2010
Alguém Olhará Por Mim
de Frank McGuinness
encenação Carlos Pimenta
Estreia já a 8 de Abril, no Mosteiro de São Bento da Vitória, Alguém Olhará por Mim, uma peça de Frank McGuinness, com encenação de Carlos Pimenta. Considerado o mais destacado dramaturgo inglês da sua geração, McGuinness escreve inspirado na história de Brian Keenan, um irlandês que esteve quatro anos em cativeiro, partilhando uma cela no Líbano com um repórter da televisão inglesa e três norte-americanos. Apesar de não ter tido qualquer informação sobre o tema, segundo Keenan não faltaram “as pedras-de-toque da verdade emocional” ao dramaturgo.
Em Alguém Olhará por Mim antagonismos pessoais que representam antagonismos políticos são transmitidos pelos reféns condenados a conviverem em cativeiro: um inglês, um irlandês e um norte-americano. Foram dois os motivos que levaram Frank McGuinness a escrever esta peça: a sua mãe, que não o deixou esquecer os reféns do Líbano, e o facto da mãe de John McCarthy ter morrido antes da libertação do filho, não concretizando o seu último desejo de se despedir dele. Depois das últimas temporadas com clássicos de Tchékhov, Ibsen e Molière, o Ensemble – Sociedade de Actores volta às obras contemporâneas e a Frank McGuinness, que, em 2001, apresentou Dama d’Água encenada por Nuno Carinhas.
Este texto de 1992, que recebeu o Prémio de Melhor Peça Estrangeira pela Associação de Críticos de Nova Iorque, será interpretado por Jorge Pinto, Alberto Magassela e Pedro Galiza. Alguém Olhará por Mim estará em cena de 8 a 24 de Abril no Mosteiro de São Bento da Vitória e poderá ser visto de terça a domingo às 21h30.
Ficha técnica:
Alguém Olhará por Mim
Someone Who’ll Watch Over Me (1992)
de Frank McGuinness
tradução Paulo Eduardo Carvalho
encenação Carlos Pimenta
cenografia João Mendes Ribeiro
figurinos Bernardo Monteiro
desenho de luz José Álvaro Correia
música Ricardo Pinto
interpretação
Jorge Pinto - Edward
Alberto Magassela - Adam
Pedro Galiza - Michael
assistência de encenação e produção Vânia Mendes
produção Ensemble – Sociedade de Actores
duração aproximada [2:00] sem intervalo
classificação etária M/12 anos
Mosteiro de São Bento da Vitória
[8 a 24 Abril 2010]
terça-feira a domingo 21:30
Provações e transformações
Paulo Eduardo Carvalho
Nascido em 1953 (em Bucrana, no condado de Donegal, a norte da República da Irlanda), Frank McGuinness é o mais importante dramaturgo irlandês da geração que sucede à de Brian Friel e Tom Murphy (nascidos, respectivamente, em 1929 e 1935) e que antecede aquela claramente mais jovem que, num arco temporal alargado, integra nomes tão diversos como os de Marina Carr (n. 1964), Enda Walsh (n. 1967), Martin McDonagh e Mark O’Rowe (ambos nascidos em 1970) e ainda Conor McPherson (n. 1971), para só referir alguns dos dramaturgos já representados no nosso país e, desse modo, mais reconhecíveis pelo público português. (Marie Jones e Dermot Bolger, de 1951 e 1959, respectivamente, são os outros dramaturgos da sua geração que também já foram objecto de tradução e representação em Portugal.) McGuinness foi revelado entre nós em 1994, através, justamente, deste Alguém Olhará por Mim (Someone Who’ll Watch Over Me), numa tradução de João Lourenço e Vera San Payo de Lemos e dramaturgia desta última, para um espectáculo produzido pelo Novo Grupo/Teatro Aberto, com encenação de João Lourenço e interpretação de João Perry, Diogo Infante e Orlando Sérgio. No ano de 2001, o Ensemble produziu um outro texto do dramaturgo, o monólogo Dama d’Água (Baglady), com encenação de Nuno Carinhas e interpretação de Emília Silvestre, um memorável espectáculo apresentado no Quartel do Bom Pastor, junto ao Jardim de Arca d’Água, no Porto.
Estas duas únicas produções, a que agora se junta esta nova encenação de Alguém Olhará por Mim, são uma pequena amostra da vasta obra do dramaturgo que inclui já 24 peças originais, argumentos para televisão (Scout e The Hen House) e para cinema (a adaptação de Dancing at Lughnasa/Danças a um Deus Pagão, de Brian Friel), bem como um número impressionante de versões e adaptações de peças dos repertórios clássico e moderno, de autores tão variados como Sófocles, Eurípides, Séneca, Henrik Ibsen, August Strindberg, Anton Tchékhov, Federico García Lorca, Aleksandr Ostróvski, Luigi Pirandello, Bertolt Brecht e Ramón María del Valle-Inclán.
Após algumas experiências literárias, Frank McGuinness estreia-se no teatro em 1982, no palco do Peacock Theatre, a sala mais pequena do Abbey Theatre, o Teatro Nacional irlandês, com a peça The Factory Girls, mas é só em 1985, com a sua incursão na mitologia protestante da Irlanda do Norte, em Observe the Sons of Ulster Marching Towards the Somme (também no Abbey), que alcança um alargado reconhecimento crítico, confirmado nos anos seguintes com peças como Innocence, em torno da figura do pintor italiano seiscentista Michelangelo Merisi da Caravaggio, ou Carthaginians, uma nova, e delirante, interpelação da situação conflituosa então vivida na Irlanda do Norte, desta feita centrada na comunidade católica. O sucesso da estreia, em 1992, no londrino Hampstead Theatre, de Someone Who’ll Watch Over Me marca um novo momento na carreira do dramaturgo, finalmente projectado para um circuito mais internacional, que melhor explica as suas colaborações com estruturas como a Royal Shakespeare Company (Mary and Lizzie, Speaking Like Magpies), o Royal National Theatre (Mutabilitie), e os londrinos Almeida Theatre (There Came a Gypsy Running) e Tricycle Theatre (Greta Garbo Came to Donegal), para além da sua continuada relação com os mais locais Abbey Theatre (The Bird Sanctuary) e Gate Theatre (The Bread Man, Gates of Gold), em Dublin.
É uma carreira variada que lhe tem merecido, por exemplo, ser caracterizado como “o mais radical e experimental dos dramaturgos irlandeses contemporâneos”: “Em todas as suas peças, ele sujeita a sintaxe da linguagem cénica à maior das fragmentações, insistindo na descontinuidade e num destaque formal do discurso íntimo e primevo” (Roche 1994: 11-12). A riqueza e diversidade das suas ficções dramáticas justificam também, amplamente, o facto de, entre 1997 e 2010, e para além de numerosos ensaios, ter sido o objecto de quatro importantes estudos monográficos: The Feast of Famine: The Plays of Frank McGuinness, de Eamonn Jordan; Frank McGuinness and His Theatre of Paradox, de Hiroko Mikami; Contexts for Frank McGuinness’s Drama, de Helen Lojek; e “Celebrating Confusion”: The Theatre of Frank McGuinness, de Kenneth Naly.
A particularidade deste Alguém Olhará por Mim, e a eventual explicação para o seu sucesso internacional, parece prender-se com a simplicidade dramatúrgica e cénica da proposta, quase resumida ao esquematismo de uma anedota: “três homens, um irlandês, um norte-americano e um inglês, encontram-se numa prisão, e o irlandês diz… e depois o norte-americano diz… e o inglês…” Segundo diversos relatos, a ideia para a peça terá partido da convergência da inspiração do próprio dramaturgo e de um desafio de Michael Colgan, já então director do Gate Theatre, em Dublin, em reacção à forte cobertura que a imprensa tinha dado à libertação, em 1990, do irlandês Brian Keenan, após cerca de quatro anos de cativeiro numa cela no Líbano, juntamente com um jornalista da televisão inglesa (John McCarthy) e três outros reféns norte-americanos. Contudo, e como o dramaturgo então repetidamente insistiu, aquele muito mediático episódio de cidadãos ocidentais feitos reféns pela Jihad islâmica funcionou simplesmente como um ponto de partida e a sua peça nunca pretendeu ser uma reflexão sobre a situação política naquela parte do globo, nem a recriação das circunstâncias exactas vividas por Brian Keenan – e das quais o próprio daria um relato pungente em An Evil Cradling, publicado também em 1992 e, em 2003, adaptado ao cinema por John Furse, sob o título Blind Flight.
Não deixa, contudo, de ser um facto relevante que, quando comparada com outras peças do autor – tais como as suas duas anteriores explorações dramáticas da mitologia protestante e da experiência católica na Irlanda do Norte, as já referidas Observe the Sons of Ulster Marching Towards the Somme e Carthaginians –, Alguém Olhará por Mim se apresenta como uma peça que exige um conhecimento muito menos específico da história e da política anglo-irlandesas. Do mesmo modo, a opção pela localização de toda a acção numa cela no Líbano parece apontar para uma espécie de diminuição do “irlandismo” ou da tendência mais auto-reflexiva de muito do teatro irlandês de que McGuinness é herdeiro e continuador – muito embora, e como sugere Helen Lojek, “os autores irlandeses nunca consigam evitar questões, sugestões e insistências sobre a relação das suas obras com as realidades irlandesas contemporâneas” (1995: 354).
Sob o formato de uma peça de câmara, um característico huis clos, no mais concentracionário dos espaços, uma cela, Frank McGuinness aposta numa arriscada estratégia de presentificação dos estereótipos nacionais associados às suas três personagens, para depois avançar para a sua desmontagem, apostando na exploração em profundidade das suas personalidades e mais complexas identidades. (No texto original, o dramaturgo investe ainda num efeito que, por completo, desaparece na sua tradução para qualquer outra língua e cultura: a criação linguística de discursos verosímeis para cada uma das suas personagens, articulando três variedades tão distintas da língua inglesa como o irlandês, o norte-americano e o inglês, demonstrando o efeito de divisão produzido por uma língua comum.) Promovendo de forma quase sistemática os paralelos entre a situação então vivida na Irlanda, em particular na Irlanda do Norte, e o Médio Oriente, numa fusão deliberada entre Beirute e Belfast, o dramaturgo reforça o exame dos estereótipos proposto pela peça, atribuindo ressonância pública e política aos conflitos privados dos seus três cativos.
Numa ficção dramática atravessada pela tragédia e pelo humor, pela solidão e pelo amor, Frank McGuinness confronta os “inimigos” exteriores e interiores das suas personagens, condenando-as – numa espécie de actualização dos mais paradigmáticos Vladimir e Estragon de À Espera de Godot, de Samuel Beckett – a uma sucessão de jogos, de exercícios destinados a passar o tempo e a combater o desespero e as cruéis provações impostas pela sua condição de prisioneiros. São, contudo, estes momentos – em que as personagens escrevem cartas imaginárias, realizam filmes, recordam corridas de cavalos, conduzem um carro pelos ares, entoam canções ou jogam uma partida de ténis – que erguem o dispositivo meta-teatral à condição de mecanismo transformador da identidade: desafiando em paralelo os estereótipos nacionais e os estereótipos de género, o dramaturgo explora as possibilidades performativas da imaginação, o impulso natural para a ficcionalização, para desse modo justificar as transformações por que passam as personagens. É assim, por exemplo, que, como sugere Eamonn Jordan, “a hostilidade entre o irlandês e o inglês é resolvida através da libertação da história, do reconhecimento da dor, da partilha do medo e da assunção da sua humanidade respectiva” (1997: 182). Mas porque nesta peça diversos planos vão funcionando em paralelo, a imagem final em que Edward penteia o cabelo de Michael, reproduzindo o gesto praticado pelos guerreiros espartanos, é também a demonstração eloquente da capacidade de reconhecer a combinação de opostos nas nossas naturezas sexuais, de combinar e integrar os universos da masculinidade e da feminilidade.
Uma outra importante dimensão da tessitura dramatúrgica de Alguém Olhará por Mim prende-se com a sua dinâmica intertextual, que faz da realidade da peça um território profundamente “textualizado”. Na realidade, o dramaturgo entretece a sua ficção dramática com uma ampla variedade de referências e de intertextos, a começar nos domínios mais especializados ou eruditos, de que podem ser exemplo alguns poemas como “The Wanderer”, originalmente escrito em inglês arcaico, “Love Bade Me Welcome”, de George Herbert, e a versão medieval do mito de Orfeu, ou os textos bíblicos do Cântico dos Cânticos e do Livro de Rute e os próprios passos do Alcorão. Mas nesta trama são também urdidas formas e manifestações mais comuns ou divulgadas da cultura popular, entre as quais encontramos as abundantes ficções cinematográficas a que se entregam as personagens – os argumentos tanto podem ser de filmes de Hitchcock, Sam Peckinpah ou Richard Attenborough, como de filmes irlandeses, por exemplo, O Meu Pé Esquerdo –, ou as muitas canções, referidas ou entoadas pelos prisioneiros, como “The Water is Wide”, “Amazing Grace”, “Jingle Bells”, “Run Rabbit Run” ou “Chitty Chitty Bang Bang”; mas também se fala de ténis, de Wimbledon, de futebol, do Manchester United, de corridas de cavalos, de Madonna, da Rainha e da Rainha-Mãe… Se tais matérias reflectem, por um lado, as paixões do próprio autor – afinal, a sua formação universitária foi como linguista e medievalista e chegou a exercer o ensino em diversas universidades irlandesas – e os seus mais alargados interesses culturais, por outro, elas funcionam como a prova – e, novamente, o paralelo dramatúrgico – do próprio trajecto vivido pelas personagens, como se aqueles três prisioneiros fossem, eles próprios, uma espécie de espessos palimpsestos que, em condições extremas, se entregam a novas e audaciosas “reescritas”.
Alguém Olhará por Mim é um exemplo acabado do grande teatro do nosso mundo contemporâneo, na medida em que, como todos os grandes textos, se abre a múltiplas e variadas perspectivas interpretativas: reflexão filtrada e distanciada da condição nacional irlandesa, das suas turbulentas aflições identitárias e dos enquistados estereótipos que estão na base de tão prolongados conflitos, a peça funciona também, senão mesmo sobretudo, como uma mais ampla meditação dramatizada sobre as nossas “prisões” interiores, mas também os nossos gestos de desafio à hostilidade, os momentos de intimidade e de solidariedade que podem contribuir para resoluções de mais positiva convergência. Edward e Michael, o irlandês e o inglês desta ficção de Frank McGuinness, mostram-se aprisionados tanto pelos seus raptores libaneses como pelas suas próprias atitudes tradicionais de um para com o outro; e, nesse sentido, a imagem final da peça é tanto o testemunho de um espaço para uma eventual solução harmoniosa dos conflitos entre as duas nações que cada um deles representa, como uma espécie de encontro sublimado para lá de todas as condicionantes associadas aos seus papéis sexuais. Numa magnífica demonstração do exemplo beckettiano já invocado, o dramaturgo constrói um texto cuja acção dramática é sustida simplesmente pelo interesse do espectador nos estados psicológicos das personagens, nas suas oscilações, invenções e resoluções. A demonstração eloquente parece ser a de que não será por falta de matéria cultural que a humanidade não poderá resolver os seus impasses, tudo dependendo, para além das circunstâncias, da nossa capacidade comum de reescrever e de imaginar de novo os muitos papéis de que nos vamos fazendo.
A promessa encerrada no título da peça – e roubada a um verso de uma canção famosa de George e Ira Gershwin, “Someone to Watch Over Me”, de 1926, imortalizada em vozes tão distintas como as de Ella Fitzgerald ou Frank Sinatra – é a de que haverá sempre alguém a olhar por nós: trata-se de uma ideia esperançosa e estimulante, infelizmente contradita por alguns acontecimentos da própria peça, como a morte de Adam, mas também reforçada pela dinâmica gerada com a sua ausência. Na verdade, as circunstâncias do cativeiro destas personagens evoluem de uma primeira fase de reticência e de hostilidade aberta para uma espécie de sistema de apoio psicológico mútuo até à manifestação final de puro amor. Mais do que simples boas intenções, trata-se da demonstração imaginativa de uma possibilidade de ultrapassagem das barreiras artificiais de nação, de cultura e de género: o que certamente poderá continuar a estar entre as expectativas legítimas associadas ao exercício artístico e, muito particularmente, à criação teatral, esse domínio liminar, por definição, em que o real e a ficção se cruzam e interceptam de forma singularmente poderosa.
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